Nós, sociólogos, analisamos a sociedade a partir de teorias e métodos
científicos. Defendemos a igualdade social e os valores democráticos. Somos contra os diversos tipos de
preconceitos e as várias formas de violência presente na sociedade. Aqueles que
têm aversão ao nosso ofício, nos veem como ameaça aos seus privilégios, pois ideias
podem tomar forma concreta, destruir injustiças e derrubar posições de poder. Advertimos
os leigos, despertamos reflexões, fomentamos escolhas. Tudo isso não apenas pautado em nossas
opiniões pessoais, mas em nossa formação profissional, que se deu com muito
estudo. Lemos muito, pesquisamos muito, fazemos muitos questionamentos. Buscamos
sempre atualizar nossos conhecimentos. Somos humanos, por isso podemos cometer
erros, assim como tantos outros profissionais. Porém, há algo que nos
diferencia em nossa essência: Para ser sociólogo é preciso ser crítico, é
preciso questionar, duvidar, nunca naturalizar. Ser sociólogo não é ser
comunista, marxista, petista ou qualquer outro adjetivo similar ou não. Procure
se informar e não nos coloque rótulos, ainda mais se você não conhece os
rótulos que utiliza. Não tire conclusões precipitadas. Faça
como nós: estude! O estudo vai fazer de você um ser humano melhor.
Sociologia Descolada
Um espaço alternativo para o conhecimento sociológico.
quinta-feira, 19 de abril de 2018
sábado, 18 de novembro de 2017
Um panorama da obra de Georg Simmel: teoria sociológica e teoria da cultura
Luis Afonso Salturi
Artigo publicado originalmente na revista MovimentAção v. 03, n. 04, pp. 162-178.
Georg Simmel, 1914 |
O interesse pela obra de Georg Simmel e as traduções
brasileiras
O filósofo e sociólogo
alemão Georg Simmel (1858-1918) ingressou na Universidade de Berlim em 1876,
onde estudou História, Filosofia, Psicologia e Etnologia e História da Arte.
Desde a época de estudante, se interessava por diversas disciplinas. Dono de uma
grande liberdade intelectual, Simmel acreditava que a justificação última da vida
acadêmica radicava na produção material que promove o cultivo dos indivíduos educados, como apontam seus
ensaios sobre a cultura (SIMMEL, 2013). Possuidor de uma carreira prestigiosa
como professor e palestrante, sua extraordinária originalidade pode ser
associada à sua posição como pensador ilhado, considerando os aspectos
positivos e negativos dessa situação em que se encontrava. Seu fracasso
profissional se manifestou institucionalmente ao tentar obter a designação de
professor titular. Somente quatro anos antes de seu falecimento, em 28 de
setembro de 1918, vitimado por um câncer de fígado, que Simmel conseguiu adentrar
numa cátedra, na Universidade de Estraburgo, cidade para onde se mudou.
O filósofo espanhol
Ortega y Gasset (1883-1955), um dentre os vários intelectuais que foram seus alunos,
ao comentar sobre a heteronomia de objetos da obra simmeliana, comparou Simmel
a um “esquilo filosófico” que pega várias nozes e rói uma a uma, um pouco de
cada. Isto porque Simmel, em suas análises, tratava os temas que escolhia como
uma plataforma de decolagem para executar exercícios mentais excelentes e
originais, optando preferencialmente pela forma ensaística. Os elementos e as
transformações relacionados à vida moderna foram temas presentes em vários dos seus
ensaios, nos quais as análises do social e dos bens culturais ganharam
destaque. Essas caraterísticas explicam em parte porque sua contribuição como
pensador ultrapassa as fronteiras entre as disciplinas humanísticas e porque sua
obra vem sendo resgatada nas últimas décadas.
Nos
últimos anos, a produção intelectual de Georg Simmel tem despertado grande
interesse no ambiente acadêmico brasileiro, principalmente na área das Ciências
Sociais. As recentes traduções em língua portuguesa das obras desse autor se
devem tanto à redescoberta de sua obra teórica, quanto aos interesses
promovidos pelos especialistas brasileiros e estrangeiros, que reverenciam cada
vez mais a atualidade de seus escritos. Situação esta, que abranda a lacuna
gerada pelo modo fragmentário como a obra de Georg Simmel foi publicada no
Brasil. É preciso lembrar ainda que muitos cientistas sociais brasileiros
tiveram acesso ao pensamento do autor alemão a partir de publicações em língua
estrangeira, grande parte disponível em coletâneas em inglês. Contudo, dentre
os estudos de especialistas publicados em português, vale destacar o denso
trabalho de Leopoldo Waizbort (WAIZBORT, 2001) e a obra introdutória de Frédéric Vandenberghe
(VANDENBERGHE, 2005), como sendo os mais importantes atualmente. Além dessas
obras, tem crescido o número de traduções dos escritos de Georg Simmel, tanto
em formato de livros quanto em artigos publicados em revistas especializadas.
No que diz respeito aos
artigos, já na década de 1970, alguns textos foram traduzidos para o português
e lançados em coletâneas temáticas, dentre eles destacam-se: A metrópole e a vida mental (SIMMEL,
1979), texto clássico da Sociologia Urbana, traduzido do inglês por Sérgio
Marques dos Reis, e O indivíduo e a díade
(SIMMEL, 1976), traduzido por Roberto Schwartz, também do inglês, mas cotejado
com o original alemão. Em meados da década de 1990, alguns ensaios importantes foram
traduzidos por Simone Carneiro Maldonado e publicados na revista Política e Trabalho (SIMMEL, 1996a,
1996b, 1998a, 1998b e 1999). Nos últimos anos, podem-se mencionar como
relevantes o ensaio Sociologia da
refeição, publicado em na revista Estudos
Históricos (SIMMEL, 2004), e até mesmo a nova tradução do texto clássico da
Sociologia Urbana mencionado, realizada desta vez por Leopoldo Waizbort
(SIMMEL, 2005), um dos principais especialistas da obra do autor no Brasil.
Sobre a
publicação de coletâneas com textos de Georg Simmel em formato de livro, estas
tiveram início com o volume organizado por Evaristo de Moraes Filho, para a Coleção Grandes Cientistas Sociais, sob
a coordenação de Florestan Fernandes (SIMMEL, 1983). Além dela, outras coletâneas de ensaios temáticos
são: Filosofia do Amor (SIMMEL, 2001), traduzida do
francês por Eduardo Brandão, Simmel e a
Modernidade (SIMMEL,
2005), organizada
por Jessé Souza e Berthold Ölze, Georg
Simmel: sentidos, segredos (SIMMEL, 2011), compilação dos artigos traduzidos por Simone Carneiro
Maldonado, e O conflito da cultura
moderna e outros escritos (SIMMEL, 2013), organizada por Arthur Bueno. É importante destacar ainda a
publicação de obras integrais de Georg Simmel, como Questões fundamentais da Sociologia (SIMMEL, 2006), Ensaios
sobre teoria da história (SIMMEL, 2011) e Schopenhauer &
Nietzsche (SIMMEL,
2013),
que demonstram o quanto tem crescido o interesse pela tradução das obras do
autor no país.
Após esse levantamento bibliográfico,
passo agora a examinar uma pequena parte da obra de Georg Simmel, na qual o
autor apresenta sua teoria social. Em seguida, analisarei aquelas cuja temática
gira em torno de elementos da vida moderna e da cultura.
O investimento de Georg Simmel na Sociologia
Na
última década do século XIX, a Sociologia começou a se libertar da crença no
progresso e no “dever-ser da sociedade” e passou a se concentrar na sociedade
do presente, enquanto uma ciência da vida moderna. Desde seu primeiro livro,
intitulado Soziale differenzierung: soziologische und
psychologische untersuchungen (Sobre a
diferenciação social: estudos sociológicos e psicológicos), publicado em
1890, Georg Simmel se destacou nesse
âmbito ainda amorfo da Sociologia. Em sua produção intelectual, o autor operou
uma metamorfose da “ética” para “ciência moral”, pois o que no campo da
filosofia era tratado como ética passou a ser tratado como ciência social, e a “ética”,
vista pela sua historicidade, transformou-se em “moral”. Sendo assim, na constituição
de um espaço novo, a Sociologia surgiu dessa forma estratégica (WAIZBORT, 2006, p. 509).
Em A teoria do conhecimento da ciência social,
ensaio introdutório de seu primeiro livro, Simmel (2004) apresenta uma discussão
epistemológica na qual a Sociologia é definida como uma “ciência eclética” que
opera com resultados da investigação da História, da Antropologia, da Estatística,
da Psicologia, como se tratasse de produtos semielaborados. Entendida como uma
ciência de “segunda potência”, a Sociologia criaria novas sínteses a partir
daquilo que para as outras ciências já são sínteses. Além de ressaltar a
importância da Sociologia, esse texto apresenta vários conceitos presentes ao
longo da produção teórica do autor, dentre os quais está a definição de
sociedade como o resultado das relações e interações entre os indivíduos.
No
artigo Como as formas sociais se mantêm,
publicado originalmente em 1897 na revista L’Anné
Sociologique, dirigida pelo sociólogo francês Émile Durkheim (1958-1917), Simmel (1983) formula o conceito de sociação para designar os modos pelos
quais os atores sociais se relacionam e apresenta um método a partir do qual a
Sociologia poderia se tornar uma ciência, com um campo de estudo específico e
diferenciado daqueles das outras disciplinas. Tal método consiste em abstrair a
forma de sociação dos estados concretos,
dos interesses e dos sentimentos que constituem seu conteúdo. Somente isolando
essa forma mediante a abstração é que se poderia constituir uma ciência da
sociedade. Assim, a Sociologia deveria buscar seus problemas nas formas de vida
social, sendo que seu domínio estaria nas formas sociais, que tomam os grupos
de indivíduos unidos para viver uns aos lados dos outros, ou uns para os
outros, ou então uns com os outros.
De modo
semelhante ao que acontece na teoria social do seu conterrâneo e contemporâneo,
o sociólogo Max Weber (1864-1920), na teoria sociológica simmeliana o indivíduo
é o elemento fundamental que constitui a sociedade. Isto porque Simmel entende
por sociedade não apenas um conjunto complexo de indivíduos e grupos unidos
numa mesma comunidade, mas toda a parte onde os indivíduos se encontram em
reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou passageira. Ao tratar
da relação indivíduo-sociedade, o autor explica porque a sociedade se coloca
como algo que domina as existências particulares. Diferentemente de Durkheim em
Da divisão do trabalho social
(DURKHEIM, 2004), Simmel salienta a importância do conflito para a união do
grupo e a necessidade da oposição entre os indivíduos, pois, para este, é da
própria luta que nasce a unidade.
Para se conseguir a definição de sociedade é preciso então convocar todas as
formas da sociação e forças que
mantêm unidos seus elementos.
A “grande” Sociologia
No primeiro
capítulo da obra Soziologie: untersuchungen
über die formen der vergesellschaftung (Sociologia: estudos sobre as formas de socialização), publicada
originalmente em 1908, em dois volumes e conhecida como a “grande” Sociologia, Simmel
(1926) afirma que “toda a ciência se funda numa abstração”. O que diferencia a Sociologia
das demais ciências histórico-sociais não é o objeto, mas o modo de
considerá-lo, pois a Sociologia faz da sociedade um conceito abstrato. O autor apresenta
vários conceitos que são de extrema importância para a compreensão de sua
teoria sociológica. Dentre os quais, está o de sociedade, que se caracteriza
pela distinção entre forma e conteúdo.
Podemos
entender por formas sociais os princípios
sintetizadores que selecionam elementos do material da experiência e que
modelam dentro de determinadas unidades. Já os conteúdos são tudo o que é capaz de originar a ação ou a recepção
de suas influências. É tudo o que existe nos indivíduos, que são os portadores
concretos e imediatos de toda a realidade histórica, como instinto, interesse,
fim, inclinação, estado ou movimento psíquico. São aspectos da existência que
se determinam em si mesmos e não contém nenhuma estrutura nem a possibilidade
de ser apreendidos em sua imediatez.
No capítulo
seguinte, o autor afirma que os grupos sociais possuem características
específicas conforme o número de elementos que os compõem. Enquanto alguns
desenvolvimentos necessários ou possíveis só podem ser realizados acima ou
abaixo de um determinado número de elementos, outros são impostos ao grupo por
certas modificações puramente quantitativas. Desse modo, os desenvolvimentos
grupais dependem de certas condições numéricas. O autor ainda comenta sobre o
tamanho e as características dos grupos, explica a diferença entre eles,
fornece exemplos de agrupamentos pequenos e grandes, e analisa o radicalismo e
a coesão.
No
segundo volume dessa obra, Simmel (1927) reúne um grupo de ensaios sob o título
O espaço e a sociedade. Fazem parte
desse capítulo as digressões sobre a limitação social, a Sociologia dos
sentidos e o estrangeiro, textos que apresentam análises a respeito da
socialização construídas sob um ponto de vista inovador. No ensaio
introdutório, o autor afirma que não são as formas de proximidade ou de
distância que produzem fenômenos como “a vizinhança” e “a imigração”. Esses
fatos são produzidos exclusivamente por fatores espirituais e se verificam
dentro de uma forma espacial, sendo que o que realmente tem importância social
não é o espaço, mas o encadeamento e a conexão das partes do espaço produzidas
por fatores espirituais. A relação entre dois elementos, que se dá a partir de
um movimento recíproco, tem lugar entre eles no sentido espacial. A ação
recíproca transforma o espaço, antes vazio, em cheio. A socialização produz nas
distintas classes de ação recíproca entre os indivíduos outras possibilidades
de convivência. Porém, muitas delas se realizam de tal modo que a forma
espacial em que têm lugar justifica sua atuação para fins de conhecimento.
Assim, para tratar das formas de socialização é preciso dar importância às
condições espaciais que permitem suas características e desenvolvimentos.
Em a Digressão sobre a Sociologia dos sentidos, Simmel (1927) afirma que a percepção do
outro com os órgãos sensoriais possui uma importância sociológica fundamental.
O conjunto de perguntas que fazemos a nós mesmos sobre os outros determina uma
divisão do trabalho realizado entre os sentidos. A impressão sensorial serve
como um meio de conhecimento do outro. Isso porque a impressão sensorial além
de possuir um valor sentimental, permite a relação com o outro a partir do conhecimento
instintivo e voluntário. Para fundamentar suas conclusões, o autor faz uso de exemplos
históricos, sendo que, as transformações históricas podem ser entendidas como
os conteúdos e os usos dos sentidos,
as formas.
Ao longo
do ensaio, Simmel aponta várias características dos “órgãos sensoriais”: a voz,
os olhos, o rosto, o ouvido, o olfato e o tato. Segundo o autor, a voz serve
para conhecer os sentimentos atuais de um indivíduo e suas maneiras de ser,
pois pode produzir um efeito atrativo ou repulsivo. Os olhos possuem uma função
sociológica particular, subjetiva e de ação recíproca, pois revelam “a alma”. Nos
indivíduos que se olham mutuamente, o desvio do olhar destrói a relação, pois
ao baixarmos os olhos privamos do outro a possibilidade de nos conhecer. Além
disso, os olhos mantêm uma dependência do rosto, que é o lugar geométrico de todos
os conhecimentos, o símbolo de tudo o que o indivíduo apresenta como pressuposto
de sua vida. Como símbolo da sucessão da vida, o rosto apresenta o passado do
indivíduo em forma de marcas físicas: a história de vida e as qualidades
básicas relativas à natureza. É o primeiro objeto do “olhar cara a cara”, pois
oferece à mirada o símbolo mais perfeito da interioridade permanente.
Sobre a
relação do ouvir e o olhar, o autor afirma que ouvido é um órgão egoísta, pois não
fornece nada. Diferente do olho, que toma é dá ao mesmo tempo, o ouvido só pode
tomar e dar quando somado à boca e à linguagem. Além disso, existe uma
diferença entre o cego e o surdo no que se refere ao estado de ânimo
sociológico. Para o cego, o outro existe na sucessão temporal de suas
expressões. O cego não consegue perceber a simultaneidade inquieta de todos os
passados que se mostram no rosto. Recordamos melhor o que ouvimos do que aquilo
que vemos. Quem vê sem ouvir vive mais confuso, desconcertado e intranquilo que
aquele que ouve sem ver. É o que acontece com o surdo.
Sobre o olfato,
o autor afirma que este possui um sentido dissociador. É possível qualificar o odor
como desagregador e antissocial, não só porque provoca mais repulsões que
atrações, mas porque a reunião de um grupo grande de indivíduos jamais lhe
fornece um tipo de atração. É um modo de conhecimento que em relação aos outros
órgãos sensoriais é difícil descrever com palavras, diferentemente do ouvido e
dos olhos, pois não consegue projetar-se no plano da abstração. Por outro lado,
Simmel analisa o papel sociológico do perfume artificial e afirma que o mesmo
recobre a atmosfera pessoal e a substitui por uma atmosfera objetiva. Entretanto,
ao mesmo tempo chama a atenção sobre ela. Do perfume que cria essa atmosfera
fictícia, se supõe que será agradável a todas as demais e que constituirá um
valor social. Isso se refere a uma “teleologia individual-egoísta e social” e ao
fenômeno da estilização da personalidade em algo geral.
Na
análise do tato, Simmel discute sobre a aproximação espacial, buscando exemplos
em diferentes períodos da vida humana. Apresenta uma análise etnológica com
exemplos de costumes de diversos povos, vendo o incesto como um exemplo da dualidade
aproximação/distanciamento. Nesse caso, a convivência na mesma casa
contribuiria para a “atrofia da excitação sexual”. O autor cita também algumas
mudanças que ocorreram com a modernidade, questões desenvolvidas em outros ensaios,
que serão tratados a seguir. Simmel vê no homem moderno uma tendência à
individualização, o que contribui para uma maior personalidade e liberdade, o crescimento
da sensibilidade para com as impressões visuais e o distanciamento do
indivíduo, a reserva.
Em a Digressão sobre o estrangeiro, Simmel
(1927) afirma que viajar significa a liberação de qualquer ponto definido no
espaço. Ao contrário, a oposição de viajar é a fixação em um ponto qualquer.
Para o autor, as relações espaciais são a condição e o símbolo das relações
humanas. O tipo social do estrangeiro significa a unificação dessas duas
características, representando a unificação da proximidade e da distância,
sendo “uma forma específica de interação”. O estrangeiro é um elemento do
próprio grupo social, mas que, se por um lado, é imanente e tem uma posição de
membro, por outro, está de certo modo fora do grupo, se confrontando com ele.
Na
história da economia o estrangeiro é sempre tido como um comerciante, o
intermediário das relações de trocas mercantis, já que suas características
possibilitam melhor a condição da troca, justamente por ser uma “peça extra”
nessas relações. Os judeus da Europa são citados pelo autor como exemplos
históricos clássicos desse tipo social, principalmente ao se considerar a questão
da posse de terra, já que os mesmos não são proprietários. Simmel cita como
exemplo o imposto comum fixado e cobrado aos judeus, na Idade Média, em
Frankfurt e outros lugares. Nessa época, a fixação da cobrança estava baseada
no fato de que o judeu tinha sua posição social como “judeu” e não como um
indivíduo possuidor de certos conteúdos objetivos.
O
estrangeiro possui como característica a objetividade, que também pode ser
definida como liberdade, pois o indivíduo objetivo não está amarrado a nenhum
compromisso que poderia prejudicar sua percepção, entendimento e avaliação do
que é dado. Além disso, o estrangeiro examina as condições com menos preconceito,
seus critérios são mais gerais e objetivamente ideais. Ele não está preso à
ação e ao hábito, pela piedade ou algo precedente. Para o autor, no caso de uma
pessoa de um lugar ou etnia diferente, estes elementos que a diferenciam não
têm nada de individual, sendo apenas a condição de origem, que é ou que poderia
ser comum a muitos estrangeiros. Por isso, os estrangeiros não são realmente
concebidos como indivíduos, mas como “estranhos de um tipo particular”, pois o
elemento de distância não é menos geral que o elemento de proximidade.
A “pequena” Sociologia
Em sua obra Questões fundamentais da Sociologia,
publicada em 1917 e conhecida como a “pequena” Sociologia, Simmel (2006) aponta
diretrizes para a legitimidade e demarcação da Sociologia como ciência. Para o
autor, a Sociologia é uma entre as disciplinas voltadas para a sociedade e que
tratam sobre temas humanos, mas que possui suas especificidades e necessita a
demarcação de seu campo de estudo. A Sociologia é um constructo intelectual baseado na relação sujeito-objeto – processo
pelo qual isolamos um fenômeno e o reduzirmos a elementos mais simples para
poder entendê-lo. Assim sendo, segundo o autor, o que realmente existe são constructos
complexos, que constituem realidades últimas e que podem ser consideradas
sínteses, pois existem como unidade
somente na nossa consciência.
Ao longo da obra, o autor
comenta sobre as diferentes distâncias em que o espírito humano se coloca
frente aos fenômenos para poder entendê-los, fazendo uma analogia com a observação
da imagem de uma pintura, que necessita certo distanciamento. Ao tratar da
sociedade, Simmel (2006, p. 14-25) comenta sobre as diferentes relações
praticadas pelos indivíduos reciprocamente. A sociedade é um “conceito
abstrato”, é algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo, um “acontecer”.
Portanto, o autor define a sociedade como a “interação psíquica entre indivíduos”
e a Sociologia, o estudo das formas de sociação.
Por isso, a descrição das formas dessas ações recíprocas constituiria a tarefa
da ciência social no sentido próprio. Ao tratar do modo de observação humano para
mostrar a importância da abstração e o uso do conceito de forma nessa investigação, o autor utiliza exemplos que vão desde as
ciências naturais até as ciências humanas, a filosofia, a arte e a religião.
Ao esboçar um método
sociológico, Simmel (2006, p. 30-35) afirma que o resultado da observação deve
passar pelo caminho que leva de uma unidade
indiferenciada, passando por uma multiplicidade
diferenciada, para chegar até uma unidade
diferenciada. Mesmo não citando Auguste Comte, Simmel refere-se às Leis dos Três Estados, pelo qual o
conhecimento científico percorre: teológico, metafísico e positivo (COMTE,
1978). Para tornar mais claro seus apontamentos, o autor compara a análise das
formas sociais com a abstração geométrica, utilizada na análise da forma
espacial dos corpos. Outra analogia é com a gramática, que isola as formas
puras da linguagem dos conteúdos nos quais elas vivem. É desse modo que a
análise sociológica pautada em forma
e conteúdo transforma os fatos. Tida
como qualquer outra ciência exata, a Sociologia se dividiria em dois âmbitos filosóficos: a teoria do conhecimento das
ciências sociais e a metafísica da disciplina.
No segundo capítulo dessa
obra, Simmel (2006, p. 39-58) analisa as reações do indivíduo frente à
coletividade e ao pertencimento grupal, bem como as direções tomadas pelo grupo
em relação ao indivíduo. O autor afirma que o indivíduo reage à pressão que
sofre pela “massa” (grupo social), manifestada por sentimentos, impulsos e
pensamentos contraditórios. Enquanto o indivíduo sofre essa pressão, a “massa”
está convencida de suas orientações. Contudo, o indivíduo ainda goza de certa
liberdade enquanto as ações da “massa” seriam determinadas por uma lei natural.
O autor fornece exemplos de como se dão essas relações. Mesmo não tratando
especificamente da identidade, Simmel discute sobre vários elementos envolvidos
nessa noção conceitual, como o significado da semelhança e da diferença na vida
social, percebendo como as características individuais são reduzidas frente à “massa”
e como a individualidade é mantida a partir de sentimentos instintivos, fatores
que estariam relacionados com o nivelamento social.
Segundo Simmel (2006, p.
60-61), a interação entre os indivíduos surge a partir de determinados impulsos
e da busca de certas finalidades, que fazem com que os mesmos mantenham uma
relação de convívio. A sociação é interação
entre os indivíduos, é a forma na qual os mesmos, em razão se seus interesses, desenvolvem-se
conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se
realizam. Tais interesses formam a base da sociedade humana. A matéria de sociação, o conteúdo, é “... tudo o que
existe nos indivíduos e nos lugares concretos de toda a realidade histórica
como impulso, interesse, finalidade, tendência, condicionamento psíquico e
movimento nos indivíduos – tudo o que está presente nele de modo a engendrar ou
mediatizar os efeitos sobre os outros, ou a receber esses efeitos dos outros”
(SIMMEL, 2006, p. 60). Simmel trata sobre a autonomização dos conteúdos, ou
seja, a autonomia dos objetos criados pelo homem, sejam estes realidades
concretas ou abstratas. Não só os conteúdos, mas também as formas sociais
adquirem vida própria. Simmel define esse fenômeno como sociabilidade, que é a sociação
em sua forma mais pura, ou seja, aquela que acontece entre iguais.
A cultura filosófica como aventura
Originalmente
publicada em 1911, a obra Philosophische
Kultur (Cultura filosófica, ou Sobre
la aventura, na versão espanhola) é
composta por seis capítulos que tratam de temas variados: Para uma psicologia filosófica, Para
uma filosofia dos sexos, Ensaios de
estética, Sobre personalidades
artísticas, Sobre filosofia da
religião e Sobre filosofia da cultura.
Na introdução, Simmel (2002) mostra o que
confere unidade aos ensaios que constituem sua obra. Essa unidade está
relacionada à concepção de filosofia da qual o autor se utiliza para
interpretar a realidade. O que é comum nessa concepção não é propriamente o
objeto da reflexão, mas o processo a partir do qual se constitui seu
pensamento. Com esse conjunto de ensaios, o autor dialoga com um ramo especial
da filosofia, a metafísica. A metafísica simmeliana se apresenta como um
processo do pensamento, um conjunto de construções mentais baseada no movimento
do espírito humano, que se realiza socialmente oscilando entre os conteúdos
objetivos e subjetivos da vida. Nesse sentido, o conhecimento não pode ser
entendido desde um lugar de ruptura entre sujeito e objeto, mas como uma via de
trânsito entre eles. A cultura filosófica
é, então, o dualismo que marca a internalidade do sujeito e que, num
movimento contínuo, se expressa nas formas que constituem o mundo social. Ao
final do texto da introdução, o autor menciona uma fábula que serve como uma metáfora
sobre a necessidade do espírito humano de crescer, buscando sempre algo para
além do mundo físico.
No
ensaio O conceito e a tragédia da cultura,
Simmel (2002) trata da relação do ser humano com a realidade do mundo, o que dá
início ao processo entre sujeito e objeto, que é uma característica da
singularidade humana. Para o autor, a ideia de cultura se encontra entre esse
dualismo e seu surgimento se dá quando acontece a aproximação entre a alma
subjetiva e o produto espiritual objetivo. Isto porque a cultura é o movimento
de síntese desses dois elementos, sendo que nenhum deles a contém em separado.
A cultura só pode ser encontrada no aperfeiçoamento dos indivíduos, momento em
que ocorre a cultivação.
A
cultura é uma síntese, mas a síntese não é a única forma de unidade, uma vez que ela sempre
pressupõe a separação dos referidos elementos como etapa anterior. Fazem parte
desse processo a cultura objetiva e a cultura subjetiva. Cultura objetiva são
as instituições, os conhecimentos, as atitudes que os homens desenvolvem ao
longo da história, são as coisas em que a elaboração e o crescimento conduzem a
alma humana à sua consumação própria e que representam trechos do caminho que o
indivíduo particular ou a globalidade recorrem sem interrupção até uma
existência mais elevada. Cultura subjetiva é a apropriação de toda cultura
objetiva, anterior e exterior ao indivíduo, ela é a medida de desenvolvimento
que as os indivíduos alcançam.
A partir
da conclusão de uma obra cultural, esta não apenas passa a ter uma existência
objetiva e uma vida própria, como passa a conter nesta existência autônoma,
força e fraqueza, componentes e significação, sobre os quais o homem não tem
responsabilidade e pelos quais é frequentemente surpreendido. O homem cria algo
objetivo e autônomo, que torna o caminho para o desenvolvimento do sujeito de
si mesmo para si mesmo, o que constitui o conceito de cultura. Esse elemento
integrante e condicionante da cultura é predeterminado a um desenvolvimento
próprio, que consome continuamente forças dos sujeitos. Contudo, o
desenvolvimento do sujeito não consegue acompanhar o desenvolvimento do objeto
e é daí que decorre a tragédia da cultura.
Outro
ensaio que tematiza a criação humana é A
aventura. Nesse texto, Simmel
(2002) afirma que toda a criação e experiência humana têm uma dupla
significação: gira em torno do seu próprio centro, refletindo amplitude,
profundidade, prazer e dor ao nível da experiência imediata; faz parte do
decorrer da vida, não apenas uma totalidade circunscrita, mas também componente
de um organismo completo. Esses dois sentidos configuram cada conteúdo da vida.
Por sua vez, a aventura extrapola o contexto da vida, como que se corresse à
margem dela. A aventura é como se fosse um corpo estranho à vida, mas que, no
entanto, está ligada ao seu centro. Ao se localizar fora do contexto da vida,
volta a se inserir nela, pois, o externo pode ser entendido como uma forma do
interno.
A aventura
pode ser comparada à lembrança dos sonhos na memória, que são esquecidos em
situação de se situarem fora do contexto do sentido da totalidade da vida. Quanto
mais uma aventura corresponder ao seu conceito, permanecerá como uma lembrança
na memória, assim como um sonho marcante. A aventura tem começo e fim, o que
constitui sua centralização num sentido próprio e seu desligamento dos
entrelaçamentos e encadeamentos dos seus conteúdos. A aventura é independente
do antes e do depois, seus limites se determinam sem considerá-los. O começo e
o fim da aventura são determinados como uma ilha na vida e não como um pedaço
de continente, determinado pelos lados. A aventura não termina porque alguma
outra coisa iniciou, pois sua forma temporal, seu fim radical, constitui a
figura precisa de seu sentido interior. Simmel cita vários tipos sociais propícios
à aventura. Para o autor, a semelhança entre o jogador e o aventureiro reside
em que o jogador se entrega ao acaso, contando que este pode lhe ser favorável.
O acaso condiciona o contexto do jogo, fornecendo-lhe sentido. Da mesma
maneira, fornece sentido também à vida do jogador, transformando-se numa
necessidade e num elemento de significação.
Do mesmo
modo como a aventura parece basear-se numa diferenciação dentro da vida, a vida
como um todo pode ser sentida como uma aventura. O aventureiro confia sua
própria força, em sua própria sorte e na união não diferenciada de ambas. Por isso, o aventureiro é o homem do
presente. Ele não é definido pelo passado, o que determina sua oposição à
velhice. Por outro lado, não há para ele o futuro. Uma prova extrema e bem
característica da temporalidade da aventura citada por Simmel encontra-se nas
memórias do escritor italiano Casanova, em suas histórias erótico-aventureiras
(CASANOVA, 1946). Desse modo, a relação amorosa contém em si a junção dos
elementos que também unifica a forma do aventureiro: a força conquistadora e a
concessão não constrangida, o ganho advindo da própria capacidade e a
dependência da sorte, que é concedida por uma instância incalculável alheia à
força e capacidade individual; outro elemento é a fugacidade da relação
amorosa.
Elementos da vida moderna
Os
escritos de Simmel são marcados pela presença constante de dualidades. Em
alguns de seus ensaios, o autor utiliza a complementaridade e a justaposição de
opostos, como em Da psicologia da moda:
um estudo sociológico, no qual Simmel (2005) inicia o texto tratando sobre o que chama de “tendências
contraditórias” do ser humano. Nas configurações sociais dessas contradições
tem-se frequentemente um dos polos como portador da tendência psicológica para
a imitação, uma das direções fundamentais do ser. A imitação proporciona o
estímulo de uma efetiva prova de força, pois não exige esforço criativo e
pessoal. Proporciona a tranquilidade de não estarmos sozinhos. Na imitação é o
grupo que conduz o indivíduo, na medida em que transmite a forma do seu
comportamento e liberta o indivíduo da tortura e da responsabilidade da
escolha. É apenas um fator constitutivo do nosso ser, uma das direções
fundamentais do nosso ser que satisfaz a unidade, a igualdade e o amálgama do
indivíduo na generalidade, ou seja, permite a fusão do indivíduo com a
coletividade.
De
acordo com Simmel, a moda é imitação de um modelo dado. Ela satisfaz dois
aspectos das necessidades humanas. Uma delas é a necessidade de apoio social
porque é imitação, conduzindo o indivíduo ao caminho que os demais seguem.
Nesse caso, há uma tendência para a igualdade social. A outra é a necessidade
da diferença, de distinguir-se, contrastar e destacar-se, pois a autoestima
exige distinção e o sentimento de ser especial.
Há, portanto, uma tendência para a distinção individual. Assim, a moda
significa a inclusão num grupo de iguais, a unidade de um círculo caracterizado
por ela e por isso o fechamento deste grupo frente aos que se situam abaixo dele.
Simmel afirma que desde os “povos primitivos”, a moda marca a coesão interna do
grupo a partir da diferenciação que vem de fora do próprio grupo. Na sociedade
moderna, a moda dos estratos superiores se diferencia da dos estratos
inferiores, porque ela é “um produto de separação de classes”.
A produção intelectual de Georg
Simmel afirma a importância do estudo dos detalhes da vida cotidiana do século
XIX, pois esses fenômenos culturais expressam as imagens que a sociedade produz
de si mesma. As análises do autor sobre determinados fenômenos do capitalismo
moderno permitem relacionar diversas esferas da vida humana, sejam elas
sociais, econômicas, políticas, culturais ou ideológicas. É dentro dessa
perspectiva que se insere um de seus livros mais importantes: a Filosofia do
dinheiro (SIMMEL, 1977). Publicada
originalmente em 1900, essa obra compila e sintetiza análises apresentadas
anteriormente em vários ensaios. Nela, o autor faz uma constante
referência ao mundo visual da sociedade moderna, abordando o significado
documental de fenômenos como as exposições de arte, a moda, as grandes cidades
e o dinheiro.
No ensaio A metrópole e a vida mental, Simmel
(1979) apresenta algumas das ideias desenvolvidas na Filosofia do dinheiro, mostrando como o indivíduo se adequou à
sociedade no meio urbano, ao receber certas influências do ambiente moderno que
intensificam seus estímulos. Na visão do autor, a personalidade se ajustou a
essas forças externas, já que o tipo metropolitano de individualidade consiste
na intensificação dos estímulos resultantes da alteração entre estímulos
exteriores e interiores. As metrópoles são as sedes da divisão do trabalho, que
exigem dos indivíduos um aperfeiçoamento cada vez maior. Surge, então, a
especialização condicionada pela competitividade. Tudo isso promove um
psiquismo diferenciado no indivíduo metropolitano, que é chamado às novas
relações sociais nas quais a pontualidade, a exatidão e a intelectualidade
estão intrinsecamente vinculadas na conformação de sua personalidade.
Diante dessa nova sociedade
que pressiona o indivíduo, sua personalidade busca se acomodar ou se ajustar em
dois tipos de respostas ao momento do encontro com outras personalidades: a atitude blasé e a reserva. A atitude blasé resulta dos estímulos
contrastantes que são impostos aos nervos, estes encontram na recusa ao reagir
aos estímulos à última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e a forma da
vida metropolitana. Submetida a esta existência, a personalidade busca
autopreservação pela aversão, antipatia e estranheza. O que autor chama de reserva, que é o bloqueio de contato
mais próximo entre os indivíduos do meio urbano. A atitude blasé e a reserva
não são resultantes de escolhas conscientes dos indivíduos, elas são adquiridas
e apreendidas em relações sociais recíprocas, como uma base sociopsicológica.
Os indivíduos no meio
urbano constroem seus próprios mundos por se tornarem cada vez mais concentrados
em si mesmos, fechados contra círculos vizinhos. Contudo, o homem metropolitano
é livre em comparação aos preconceitos que atrofiam o homem da cidade pequena.
Uma das características da cidade grande, então, é a extensão funcional, para
além de suas fronteiras físicas. Além disso, existe a transição para a
individualização de traços mentais e psíquicos que a cidade ocasiona em
proporção ao seu tamanho nos indivíduos. Outra questão importante levantada
pelo autor é a de que a metrópole é a sede da economia monetária. Nesse
sentido, existe uma ordenação econômica, na qual o dinheiro reduz toda a
qualidade e individualidade.
Outro ensaio relevante é O dinheiro na cultura moderna, no qual Simmel
(2005) afirma que com o desenvolvimento da modernidade, os laços que o homem
mantinha com sua comunidade e com a propriedade feudal foram destruídos. Isso
porque, a personalidade do homem medieval estava incorporada nos círculos de
interesses práticos ou sociais. Essa unidade
foi destruída na Época Moderna, que conseguiu separar e autonomizar o sujeito e
o objeto. Portanto, a relação entre personalidades e relações objetivas
desfaz-se com a economia do dinheiro, que impõe uma distância entre a pessoa e
a posse, tornando a relação entre ambas mediada por uma instância totalmente
objetiva. No que diz respeito à separação entre a posse e o possuidor, o
dinheiro conferiu, por um lado, um caráter impessoal anteriormente desconhecido
a toda atividade econômica, e por outro, aumentou a autonomia e a independência
do ser humano.
Simmel vê no dinheiro algo
livre e abstrato que na vida moderna mudou totalmente o modo dos homens se
relacionarem entre si e com o mundo. Para o autor, o dinheiro influenciou
enormemente a personalidade do ser humano, reduzindo o caráter racional das
coisas pelo calculador e os valores qualitativos pelos quantitativos. Operações
matemáticas contínuas como taxar, estimar, calcular e reduzir valores qualitativos
a valores de diferentes origens se desenvolveu no comportamento social. Sendo
assim, não se percebe que o dinheiro é apenas um meio para obter outros bens,
já que o dinheiro permite ao homem a chance de satisfazer seus desejos.
O dinheiro originou um sentimento
de liberdade que desencadeou a ausência de conteúdos da vida cotidiana e o
afrouxamento da substância vital. Ao fazer surgir uma dimensão radicalmente
nova entre liberdade e compromisso, ele permitiu ampliar um sentimento de
independência abrindo espaço para uma maior individualidade. Simmel ressalta a
definição de que o dinheiro é o deus da época moderna. A ideia de Deus teria
para o autor sua significação no fato de que todas as contradições e
multiplicidades do mundo ganhariam unidade por referência a uma potência
absoluta. O dinheiro apresenta afinidade com essa ideia.
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terça-feira, 28 de março de 2017
A relação indivíduo-sociedade nas obras de Pierre Bourdieu e de Norbert Elias
Luis Afonso Salturi
Artigo publicado originalmente na revista Tempo da Ciência (UNIOESTE), v. 17, n. 33, p. 111-122, 2010.
Introdução
Ao entrar em contato com
as obras de Pierre Bourdieu e Norbert Elias, a aproximação entre eles se torna
cada vez mais nítida. Embora suas teorias tenham origens diversas, percebe-se
que os dois sociólogos tiveram preocupações semelhantes, principalmente, ao
tentarem resolver a dualidade indivíduo e sociedade no âmbito da Sociologia. Tal
dualidade vinha se colocando na teoria sociológica desde os autores clássicos, o
que impedia um avanço significativo da mesma.
Na Sociologia clássica a
separação e a oposição entre o indivíduo e a sociedade são evidentes. Na obra
de Karl Marx, não há uma preocupação teórica com essa relação dual, os
indivíduos aparecem inseridos em classes sociais por um fator de ordem
econômica. A teoria elaborada por Émile Durkheim, ao tratar o indivíduo e a
sociedade como entidades separadas, prioriza a sociedade e a integração dos
indivíduos nela. Enquanto que, para Max Weber, os indivíduos e suas ações
sociais são os elementos que constituem a sociedade.
Na medida em que as
inovações teóricas vão se colocando, a Sociologia contemporânea se torna capaz
de responder várias questões que os estudos clássicos não conseguiram. Nas
teorias sociológicas elaboradas separadamente por Pierre Bourdieu e por Norbert
Elias, a sociedade é compreendida como um todo relacional, na tentativa de
superar as oposições e a separação entre indivíduo e sociedade presentes desde a
Sociologia clássica. Os avanços promovidos por esses autores contribuem o
estatuto científico da Sociologia, possibilitando que esta possa ser conhecida
por um público ainda maior.
Relação indivíduo-sociedade em Pierre Bourdieu
A discussão teórica acerca
da relação entre indivíduo e sociedade é um tema presente ao longo da produção
intelectual do sociólogo francês Pierre Bourdieu, tendo como marca seu livro Esboço de uma teoria da prática, precedido de três estudos de etnologia Cabila (Bourdieu, 2002),
publicado originalmente em 1972. Nesse estudo, ao
explicitar uma problemática teórica acentuada sobre a mediação indivíduo-sociedade,
o autor afirma que o mundo social pode ser analisado a partir de três modos de
conhecimento teórico.
O primeiro desses modos
de conhecimento é o fenomenológico,
chamado também de interacionista ou etnometodológico. Numa perspectiva da Filosofia
do sujeito, tal conhecimento parte da experiência primeira do indivíduo em
relação ao mundo social, sendo este apreendido a partir daquilo que é natural e
evidente. O segundo modo de conhecimento é o conhecimento objetivista, representado pelo marxismo e pela hermenêutica
estruturalista como correntes teóricas que enfatizam fatores objetivos. Esse
conhecimento constrói relações objetivas que estruturam as práticas individuais
e suas representações, rompendo com o conhecimento fenomenológico e com os pressupostos assumidos que conferem ao
mundo social o caráter de evidência e de naturalidade. Já o conhecimento praxiológico, proposto pelo autor, ao se
confrontar com as duas vertentes anteriormente citadas, resulta numa dupla translação teórica, tendo como
objeto não apenas o sistema de relações objetivas, mas as relações dialéticas
entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se
atualizam e que tendem a reproduzi-las. Sem ser apenas um retorno ao
conhecimento fenomenológico, o
conhecimento praxiológico supõe uma
ruptura com o conhecimento objetivista,
não anulando as aquisições deste, mas conservando-as e ultrapassando-as.
Partindo da exposição da
gênese e desenvolvimento dessa teoria pelo seu próprio autor, deve-se
considerar o caráter inovador da produção intelectual de Pierre Bourdieu, pois
o mesmo conseguiu reunir conhecimentos aparentemente antagônicos, ao formular
novos conceitos sociológicos. Fato que contribuiu, em certa medida, para colocá-lo
num lugar de destaque na Sociologia contemporânea. No seu livro Razões Práticas (BOURDIEU, 2004), publicado
originalmente em 1994, o autor comenta sobre o que acredita ser essencial no
todo de seu trabalho. Em primeiro lugar, uma filosofia da ciência (filosofia relacional) que atribui primazia às
relações e que raramente é posta em prática nas Ciências Sociais,
principalmente porque se opõe às rotinas de pensamento social corrente ou do
senso comum esclarecido. Em segundo lugar, uma filosofia da ação (filosofia disposicional) que atualiza as
potencialidades inscritas nos corpos dos agentes e na estrutura das situações
nas quais eles atuam.
Essa filosofia da ação é condensada por um conjunto de conceitos sociológicos
que estão dispersos em toda a sua produção científica. Dentre os quais se
destaca a noção de habitus que,
segundo Bourdieu (2003, p. 38), é
a ideia pela qual ele tentou demonstrar como se poderia escapar das
alternativas estéreis do objetivismo e do subjetivismo, do mecanicismo e
finalismo, nas quais as teorias da ação permaneciam aprisionadas. Partindo
dessa linha de pensamento, Bourdieu
(2003, p. 53) propõe uma teoria da
prática, que é definida por ele como uma ciência da dialética da
interioridade e da exterioridade, ou seja, da interiorização da exterioridade e
da exteriorização da interioridade, concepção se encontra na gênese do conceito
de habitus.
O habitus é uma
categoria de análise fundamental para os estudos sociológicos, pois não se
refere apenas ao elemento individual, mas também a um grupo ou a uma classe,
podendo ser definido como um sistema de disposições duráveis e transferíveis
que constituem a estrutura da vida social. Ao integrar todas as experiências
passadas, pode ser entendido como um sistema de esquemas de produção de
práticas que funciona como uma matriz de percepções, apreciações e ações,
tornando possível a realização de tarefas diferenciadas. Como um sistema de
disposições inconscientes, o habitus constitui o produto de interiorização
das estruturas objetivas tendendo a produzir práticas e carreiras objetivamente
ajustadas às mesmas. Portanto, a história da vida de um indivíduo pode ser
vista como uma variante do habitus de
seu grupo ou de sua classe, na medida em que seu estilo pessoal aparece como um
desvio codificado em relação ao estilo de sua época e de sua classe ou grupo
social.
Na tentativa de compreender
as implicações da noção de habitus,
Bourdieu tentou analisar as relações entre estes e os campos sociais. O conceito de campo
suporta o de habitus e se constitui
noutra ferramenta conceitual importante para os estudos sociológicos. O campo é uma rede de relações objetivas
entre posições sociais definidas objetivamente em sua existência e que fornecem
determinações que elas repõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições por
sua situação social atual e potencial e por sua posição relativa em relação a
outras posições. Visto assim, o campo
é um espaço estruturado a partir de posições de poder e disputas simbólicas no
qual pode ser constatada a existência de leis genéricas.
Nessa mesma lógica, as
práticas sociais são definidas pelo
autor como “...o resultado do aparecimento de um habitus, sinal incorporado de uma trajetória social, capaz de opor
uma inércia maior ou menor às forças sociais, e de um campo social que
funciona, nesse aspecto, como um espaço de obrigações (violências) que quase
sempre possuem a propriedade de operar com a cumplicidade do habitus sobre o qual se exercem” (Bourdieu, 2003, p. 38). Portanto, as práticas
são resultantes, por intermédio do habitus,
da relação dialética entre uma estrutura e uma conjuntura, entendidas como as
condições de atualização deste habitus,
sendo este um estado particular da estrutura.
Os habitus são diferenciados assim como as posições das quais são
produtos, entretanto também são operadores de distinções. A distinção social é
um tema caro ao pensamento de Pierre Bourdieu, que lhe dedicou um estudo amplo.
Publicado originalmente em 1979, em A
distinção (BOURDIEU, 2007), o autor faz um estudo ao mesmo tempo teórico e
empírico em que utiliza e põe à prova vários conceitos sociológicos. Dotados de
um habitus, os indivíduos são
portadores de uma espécie de senso
prático, de princípios geradores de práticas distintas e distintivas, servindo
como esquemas classificatórios e princípios de visão e de divisão de gostos
diferenciados. Assim, ao longo da obra, o autor demonstra como determinados
traços vistos como naturais num indivíduo são, na verdade, produto de uma rede
de relações e trocas no espaço social, pois o que comumente chamamos de
distinção social, uma certa qualidade considerada como inata, é de fato
diferença, separação, uma propriedade relacional que só existe em relação a
outras propriedades.
A ideia de diferença,
assinalada pelo autor, está no fundamento da noção de espaço social como um conjunto
de posições distintas e coexistentes, exteriores uma às outras, contendo em si
o princípio de uma apreensão relacional do mundo social e se apresenta
vinculada à ideia central de distinção. O sistema social não é somente um
sistema de diferenças objetivas. Os indivíduos percebem-se uns aos outros e se
comparam, quando as diferenças entre eles entram em sistemas simbólicos surge,
então, o espaço de distinções. Sua tese central é que esse espaço de distinções
simbólicas traduz e reproduz o espaço das diferenças materiais, que uma vez
percebidas, classificadas e apreciadas, funcionam como traços distintivos,
afastamentos estilísticos em sistemas de diferenças, tornando-se simbólicas. Pode-se
afirmar, então, que os indivíduos e os grupos existem e subsistem na e pela
diferença.
O modelo de A distinção, no qual Bourdieu (2007, p. 118-119) representa
as diferenças dos agentes por meio de um diagrama, define distâncias que afirmam
encontros, afinidades, simpatias e desejos. Por outro lado, a proximidade no
espaço social predispõe aproximação. O espaço social é construído de modo que
os agentes ou grupos sociais são distribuídos conforme a posição que ocupam nas
distribuições estatísticas, de acordo com dois princípios de diferenciação que
prevalecem nas sociedades mais desenvolvidas: o capital econômico e o capital
cultural[1]. De modo
geral, o espaço de posições sociais, pela intermediação do espaço de
disposições, se retraduz em um espaço de tomadas de posição. A cada classe de
posições corresponde uma classe de habitus.
Assim, uma das funções desse conceito é a de dar conta de unidade de estilo que
vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de
agentes.
Essas observações sobre a
aplicação dos conceitos propostos por Bourdieu são fundamentais para
compreender como o autor concebe a relação entre indivíduo e sociedade. Nesse
ponto, se concentra também a importância de sua teoria para os estudos que
tratam sobre trajetórias de indivíduos ou grupos. É preciso então fazer
referência ao artigo A ilusão biográfica (Bourdieu, 2004), texto incorporado como
apêndice em Razões práticas, no qual
o autor discute sobre a história de vida, uma das noções do senso comum que
entrou no universo do saber entre os cientistas sociais. Para o autor, falar em
história de vida é pressupor que a vida é um conjunto de acontecimentos de uma
existência individual concebido como história e narrativas dessa história.
Aceitar essa teoria da
narrativa é conceber a filosofia da história com o sentido de sucessão de
eventos históricos, já que a narrativa biográfica ou autobiográfica propõe
eventos que, mesmo não se desenvolvendo todos, tendem ou pretendem organizar-se
em sequências cronologicamente ordenadas e conforme certos acontecimentos que
são selecionados e que lhes são dados conexão. No que se refere à narrativa
biográfica ou autobiográfica, o autor chama atenção para o fato de que a vida
não pode ser concebida como um todo coerente e orientado que pode e deve ser
apreendido como expressão unitária de uma intenção subjetiva e objetiva de um
projeto. Essa concepção leva à construção da noção de trajetória como uma série
de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou grupo em um espaço
ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes.
Essa concepção de
trajetória aparece também em As regras da
arte (BOURDIEU, 1996), obra densa em que utiliza as mesmas categorias
sociológicas para analisar, dentre outras coisas, um romance de Gustave Flaubert.
A literatura é, então, tomada por Bourdieu como metáfora do mundo social, pois
num romance, assim como na vida real, os personagens constroem suas carreiras a
partir do espaço social. Isto porque, para Bourdieu, é preciso compreender o
campo com o qual cada um se fez. Por isso é que em Esboço de auto-análise (BOURDIEU, 2005), o sociólogo se preocupou
em escrever sua história social, apresentando-a de uma forma muito singular,
com base em sua trajetória social, experiências, expectativas e desilusões,
fazendo uso de sua própria teoria.
Bourdieu redigiu Esboço de auto-análise tendo em mente
as questões que procurava responder ao examinar a trajetória dos escritores e
artistas como Gustave Flaubert, Charles Baudelaire e Édouard Manet. O livro
pode ser visto como uma das maneiras de por à prova sua concepção de trajetória
social, e serve como um modelo de aplicação dessa proposta metodológica, por
meio da qual o autor afirma que para estudar um autor é importante saber sobre
sua trajetória e obra, para poder descobrir quais razões intelectuais e
políticas conduziram seu pensamento. Na visão de Bourdieu, cada autor só existe
e subsiste de acordo com as limitações do campo,
criando seu próprio projeto criador em função da sua percepção das possibilidades
disponíveis e inscritas em seu habitus
por certa trajetória e também pela escolha ou recusa dos possíveis. Para compreender
uma obra cultural é preciso compreender também o campo de produção e a posição
do produtor nesse espaço.
Relação indivíduo-sociedade em Norbert Elias
Na teoria sociológica desenvolvida por Norbert Elias a relação indivíduo-sociedade aparece na forma de um profundo e exaustivo questionamento, a ponto do autor lhe dedicar um livro inteiro sobre o tema. É em A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994), obra publicada originalmente em 1987, que o autor aponta várias questões sobre o tema que vinham sendo levantadas por ele desde 1939, quando publicou sua obra clássica intitulada O processo civilizador (ELIAS, 1990). No início de A sociedade dos indivíduos, o autor afirma que faltam modelos conceituais e uma visão global para tratar da relação indivíduo-sociedade, pois as noções apresentadas nas teorias sociológicas clássicas não levam em conta a interdependência existente entre indivíduo e sociedade. Uma das críticas a esse respeito é o tratamento do indivíduo como “meio” e da sociedade como “fim”. Tal visão prejudicaria o entendimento da relação entre indivíduo e sociedade e o avanço de uma conceituação mais aprimorada. Para o sociólogo alemão, tal relação é uma algo muito singular que não apresenta analogia em nenhuma outra esfera de existência. Na compreensão desse e muitos outros fenômenos, “... é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções” (ELIAS, 1994, p. 25) [grifo do autor].
Na visão de Norbert
Elias, uma compreensão clara da relação indivíduo-sociedade só se concretizaria
a partir do momento em que tanto o processo de individualização quanto a historicidade
forem incluídos na “teoria da sociedade”. Essas duas instâncias, somadas ao
conceito de habitus social, entendido
como a composição social do indivíduo, que constitui o solo no qual se assentam
as suas características pessoais, que o diferencia dos outros membros de sua
sociedade. Assim, o autor lança uma crítica à ideia da existência de um “eu”
único e exclusivo que habita em cada indivíduo. Pois, por mais autêntica ou verdadeira
que seja essa ideia, enquanto expressão da estrutura especial da consciência e
dos indivíduos num certo estágio do movimento da civilização, ela é inadequada.
Nesse sentido, segundo Elias (1994, p. 35), os instrumentos do
pensamento humano não são suficientemente móveis para tratar adequadamente de
fenômenos como a relação indivíduo-sociedade. Uma visão mais detalhada desse
tipo de inter-relação é conceito de rede, exemplificado na rede de tecido.
Nessa rede, os fios se ligam uns aos outros. Nem a totalidade da rede, nem a
forma assumida por cada fio podem ser compreendidas em termos de um único fio
ou de todos eles isoladamente considerados. A rede só é compreensível em termos
da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. O movimento dentro da
rede nada mais é do que as relações interpessoais. O entendimento dessas questões
foi prejudicado pela especialização e divisão de objetos das ciências, fato que
ocasionou um crescimento da dependência mútua entre os indivíduos e a
diferenciação de cada um.
Essa noção de rede de
interdependência aparece em A Sociedade
de corte (ELIAS, 2001). Nessa densa obra, ao tomar a sociedade de corte
como um exemplo histórico, o autor aponta a incoerência da oposição indivíduo e
sociedade por meio do conceito de figuração.
Esse conceito permite explicar de que modo e porque os indivíduos estão ligados
entre si. Ao tentar compreender a realidade social em sua totalidade, o autor
enfatiza as redes ou estruturas de interdependências que se estabelecem entre
os indivíduos e que se assemelham a um jogo. Assim, na construção e análise de
uma conjuntura histórica, tem-se como premissa fundamental a inexistência de
agentes sociais individualizados ou a ideia de uma sociedade “sobre os
indivíduos”, mas uma rede de interdependências entre eles, que engendram
códigos e comportamentos.
Por meio do conceito de figuração, ao desenvolver essa noção de
rede, Norbert Elias contribui de forma significativa para o avanço da teoria
sociológica. Outra obra de peso que segue esse modelo teórico é Mozart, sociologia de um gênio (ELIAS,
1995). Nela, o autor concebe a Sociologia como uma ciência que busca entender e
explicar o que é incompreensível na vida social. Isso se torna nítido na
escolha do subtítulo paradoxal da obra, que permite compreender também como o
autor enxerga os estudos sobre trajetórias: “Não é meu propósito destruir o
gênio ou reduzi-lo a outra coisa qualquer, mas tornar sua situação humana mais
fácil de entender, e talvez ajudar, de maneira modesta, a responder à pergunta
do que e deveria ter feito para evitar que acontecesse um destino como o de Mozart”
(ELIAS, 1995, p. 19).
Em sua pesquisa, Elias
analisa a vida do músico que desde a infância habituou-se ao sucesso se tornando
consciente de sua genialidade e que, mais tarde, passou a não aceitar a
condição subalterna de serviçal da corte do monarca-arcebispo de Salzburgo, sua
cidade natal. Mozart sentia-se injustiçado ao compor para o serviço religioso,
situação enquadrada às alternativas que um músico dispunha naquele momento,
sendo as escolhas mais sensatas na avaliação de seu pai que também era músico. Para
se libertar dos seus patronos e senhores, Mozart lutou com seus próprios
recursos em prol de sua dignidade e sua obra musical, mas não conseguiu vencer.
O autor considera
importante para a Sociologia buscar compreender os desejos e as pretensões de
cada indivíduo frente à posição que estes ocupam na vida social. Elias (1995, p. 13) afirma que para se
compreender alguém é preciso conhecer os anseios que este deseja satisfazer.
Para o autor quase todos têm desejos claros, que são passíveis de serem satisfeitos,
pois a vida faz sentido ou não para os indivíduos conforme conseguem realizar
tais aspirações. Os desejos evoluem ao longo da vida de cada um através do
convívio social e vão sendo definidos ao longo dos anos. Porém, isto pode
ocorrer de repente, associado a uma experiência especialmente grave. Elias (1995, p. 36) também chama
atenção para a postura que o pesquisador deve manter em sua pesquisa em relação
a essas questões. Para ele o pesquisador precisa partir da perspectiva do eu e não do ele para entender os desejos individuais.
Outra questão
interessante que aparece nesse ensaio sobre Mozart é a explicação do autor
sobre o processo de transição da arte de artesão para a arte de artista. Para Elias (1995, p. 135) Arte de artesão é a arte feita por
encomenda ou sob a proteção de um mecenas por um indivíduo considerado
socialmente inferior e para atender às exigências de um grupo de gosto muito
específico e hegemônico e, portanto, mais objetiva. Arte de artista é a modalidade na qual o autor, de nível social
equiparável ao de seu público e respeitado como indivíduo dotado de talento
criador, pode expressar-se com maior subjetividade.
Considerando
essas diferenças, Elias (1995, p.
45-52) mostra como alterações da estrutura social podem favorecer a formação de
um novo padrão de gosto e estilo redefinindo a relação entre o artista e seu
público. No caso específico de seu estudo, Elias mostra como se deu a ascensão
da burguesia à condição de público consumidor de cultura, a substituição do
classicismo na música erudita pelo romantismo, e a mudança do subalterno
artesão para a do artista livre e de nível social equivalente ao do consumidor
de sua arte. Para o autor, a trajetória social de Mozart mostra claramente que
a virada da arte de artesão para a criação artística livre foi um processo com
muitos estágios intermediários.
Seguindo a
mesma linha desse seu estudo sobre Mozart, em A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor (ELIAS, 2005), o autor analisa
a produção de uma tela do pintor francês Jean-Antoine Watteau relacionando-a
com o momento vivido pelo artista e as condições que permitiram sua criação. Segundo
Elias (2005, p. 23-24), assim
como Mozart, Watteau queria sua independência, porém teve mais sorte que o
músico, pois conseguiu sua admissão à Academia Francesa em 1712. Nessa época o
artista precisava doar uma obra-prima para ingressar na corporação e, então,
entregou Peregrinação para Cítera,
mas somente em 1717. Elias sabia detalhes precisos e conhecia uma vasta
bibliografia sobre esse quadro, cujo tema apresentava três diferentes versões.
Aproximações entre os autores
Os escritos de Norbert Elias lançam uma forte crítica à forma convencional como é concebida a relação entre indivíduo e sociedade tanto pelo senso-comum quanto pelo discurso científico promovido pela Sociologia. O autor trata de questões epistemológicas que remetem aos primórdios da Sociologia, período em que essa problemática já se colocava. Ao realizar essa tarefa, o autor aponta as principais dificuldades do sociólogo frente ao seu objeto de estudo. O autor lança mão da ideia de configuração para suprir a insuficiência dos conceitos sociológicos propostos pela Sociologia Clássica, colocando o problema da interdependência humana como tema central da teoria sociológica. Em muitos aspectos, essa iniciativa de Elias se assemelha às filosofia da ação promovida por Bourdieu, cujos conceitos sociológicos viabilizam uma saída alternativa às análise que priorizam ora o objetivismo ora subjetivismo, separadamente.
Um dos principais
empreendimentos desses dois autores foi a atualização e utilização do conceito
de habitus na teoria sociológica,
conceito que ganhou um espaço ainda maior na obra de Bourdieu, que se preocupou
várias vezes em definir o termo. Contudo, é preciso lembrar que o conceito de habitus possui uma longa tradição
filosófica, antes de sua apropriação por Bourdieu. De origem latina, o termo habitus foi empregado pela tradição
escolástica como tradução da noção grega de hexis, utilizada por Aristóteles para designar características do
corpo e da alma adquiridas através de um processo de aprendizagem. Dentre os
autores que utilizaram o termo antes do sociólogo francês, merece destaque o
historiador da arte Erwin Panofsky e o próprio Elias. Em Arquitetura gótica e Escolástica (PANOFSKY, 2001), estudo
apresentado em conferências em 1948 e publicado em 1951, Panofsky utiliza o
conceito de hábito mental como o
“princípio que rege a ação”. Ao retomar essa análise, Bourdieu estabelece um
sentido mais preciso ao conceito e levanta um problema sociológico. Esse
sentido é semelhante ao que aparece nas obras de Elias publicadas a partir de
1939, nas quais este define o habitus
como “composição social dos indivíduos”, “segunda natureza” ou “saber social
incorporado” (ELIAS, 1994).
Numa entrevista, quando
perguntado sobre o que achava das comparações de suas análises àquelas feitas
por Georg Simmel e por Norbert Elias, Pierre Bourdieu afirmou que só poderia
ficar contente com essas comparações. Uma vez que o primeiro foi um autor que
ele leu muito e cujas análises, principalmente aquelas sobre a cultura, também
gostou. Contudo, Bourdieu ressalta que Simmel confiava demais em sua intuição,
e que esta algumas vezes era muito superficial. Por outras razões, Bourdieu se
sente mais próximo de Elias, que capta mecanismos ocultos ou invisíveis que tem
sua base na existência de relações objetivas entre os indivíduos ou as
instituições (BOURDIEU, 2000, p. 48).
Há uma forte semelhança
entre os conceitos formulados por Elias e aqueles formulados por Bourdieu, isto
porque em suas obras ambos se preocuparam em resolver a dualidade indivíduo e
sociedade. A partir de uma leitura e análise apurada dos estudos desses autores
é possível notar que ambos lançam uma perspectiva sobre essa relação dual. O
ponto de vista de Norbert Elias em Mozart
é muito semelhante ao procedimento metodológico que Pierre Bourdieu utilizou em
Esboço de auto-análise. Além disso, assim como Bourdieu, Elias lança uma
crítica à abordagem histórica que reproduz a ideologia dominante no momento em
que supõe um caráter único aos acontecimentos e postula a liberdade individual
como fundadora das práticas, por meio de atos voluntários e intenções livres.
Essa proximidade entre os
autores aparece também no conceito de habitus.
Porém, para Elias o hábito social pode ser entendido como aquilo que
constituiria a base a partir da qual derivam as características pessoais que fornecem
aos indivíduos a formação de sua identidade. Diferente de Bourdieu, Elias se
prende às questões da historicidade e da genética do habitus, se preocupando em explicar a gênese dos habitus e porque estes evoluem e se
transformam.
Referências
BOURDIEU, Pierre.
A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo:
Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.
_____.
As regras da arte:
gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_____. A sociologia de Pierre Bourdieu. Organizada por Renato Ortiz. São
Paulo: Olho d’Água, 2003.
_____. Esboço
de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_____. Esboço
de uma teoria da prática, precedido de três estudos de etnologia Cabila.
Oeiras, Portugal: Celta, 2002.
_____. O campo econômico: a
dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000.
_____. Razões
práticas: sobre a teoria da ação. 5 ed. Campinas: Papirus, 2004.
ELIAS,
Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
_____. A Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
_____. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
_____. Mozart,
sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
_____. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e
escolástica: sobre a analogia entre arte, filosofia e teologia na Idade Média.
2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[1] Na teoria de Bourdieu, é possível distinguir quatro
tipos de capital que permitem estruturar o espaço social: o capital econômico, que é constituído
pelo conjunto de fatores de produção e bens econômicos; o capital cultural, composto pelo conjunto de qualificações
intelectuais e conhecimentos transmitidos e/ou adquiridos, podendo existir em
estado incorporado, como disposição duradoura do corpo, em estado objetivo,
como bem cultural ou e em estado institucionalizado, sancionado por
instituições; o capital social, que
corresponde ao conjunto de relações sociais de que dispõe o indivíduo ou grupo;
e o capital simbólico, que afirma
respeito ao conjunto de rituais ligados à honra, ao prestígio e ao
reconhecimento.
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