terça-feira, 28 de março de 2017

A relação indivíduo-sociedade nas obras de Pierre Bourdieu e de Norbert Elias

Luis Afonso Salturi

Artigo publicado originalmente na revista Tempo da Ciência (UNIOESTE), v. 17, n. 33, p. 111-122, 2010.



Introdução

Ao entrar em contato com as obras de Pierre Bourdieu e Norbert Elias, a aproximação entre eles se torna cada vez mais nítida. Embora suas teorias tenham origens diversas, percebe-se que os dois sociólogos tiveram preocupações semelhantes, principalmente, ao tentarem resolver a dualidade indivíduo e sociedade no âmbito da Sociologia. Tal dualidade vinha se colocando na teoria sociológica desde os autores clássicos, o que impedia um avanço significativo da mesma.
Na Sociologia clássica a separação e a oposição entre o indivíduo e a sociedade são evidentes. Na obra de Karl Marx, não há uma preocupação teórica com essa relação dual, os indivíduos aparecem inseridos em classes sociais por um fator de ordem econômica. A teoria elaborada por Émile Durkheim, ao tratar o indivíduo e a sociedade como entidades separadas, prioriza a sociedade e a integração dos indivíduos nela. Enquanto que, para Max Weber, os indivíduos e suas ações sociais são os elementos que constituem a sociedade.

Na medida em que as inovações teóricas vão se colocando, a Sociologia contemporânea se torna capaz de responder várias questões que os estudos clássicos não conseguiram. Nas teorias sociológicas elaboradas separadamente por Pierre Bourdieu e por Norbert Elias, a sociedade é compreendida como um todo relacional, na tentativa de superar as oposições e a separação entre indivíduo e sociedade presentes desde a Sociologia clássica. Os avanços promovidos por esses autores contribuem o estatuto científico da Sociologia, possibilitando que esta possa ser conhecida por um público ainda maior.

Relação indivíduo-sociedade em Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu, março de 1993. Foto:Jean-Pierre Couderc. Roger-Viollet.

A discussão teórica acerca da relação entre indivíduo e sociedade é um tema presente ao longo da produção intelectual do sociólogo francês Pierre Bourdieu, tendo como marca seu livro Esboço de uma teoria da prática, precedido de três estudos de etnologia Cabila (Bourdieu, 2002), publicado originalmente em 1972. Nesse estudo, ao explicitar uma problemática teórica acentuada sobre a mediação indivíduo-sociedade, o autor afirma que o mundo social pode ser analisado a partir de três modos de conhecimento teórico.
O primeiro desses modos de conhecimento é o fenomenológico, chamado também de interacionista ou etnometodológico. Numa perspectiva da Filosofia do sujeito, tal conhecimento parte da experiência primeira do indivíduo em relação ao mundo social, sendo este apreendido a partir daquilo que é natural e evidente. O segundo modo de conhecimento é o conhecimento objetivista, representado pelo marxismo e pela hermenêutica estruturalista como correntes teóricas que enfatizam fatores objetivos. Esse conhecimento constrói relações objetivas que estruturam as práticas individuais e suas representações, rompendo com o conhecimento fenomenológico e com os pressupostos assumidos que conferem ao mundo social o caráter de evidência e de naturalidade. Já o conhecimento praxiológico, proposto pelo autor, ao se confrontar com as duas vertentes anteriormente citadas, resulta numa dupla translação teórica, tendo como objeto não apenas o sistema de relações objetivas, mas as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las. Sem ser apenas um retorno ao conhecimento fenomenológico, o conhecimento praxiológico supõe uma ruptura com o conhecimento objetivista, não anulando as aquisições deste, mas conservando-as e ultrapassando-as.
Partindo da exposição da gênese e desenvolvimento dessa teoria pelo seu próprio autor, deve-se considerar o caráter inovador da produção intelectual de Pierre Bourdieu, pois o mesmo conseguiu reunir conhecimentos aparentemente antagônicos, ao formular novos conceitos sociológicos. Fato que contribuiu, em certa medida, para colocá-lo num lugar de destaque na Sociologia contemporânea. No seu livro Razões Práticas (BOURDIEU, 2004), publicado originalmente em 1994, o autor comenta sobre o que acredita ser essencial no todo de seu trabalho. Em primeiro lugar, uma filosofia da ciência (filosofia relacional) que atribui primazia às relações e que raramente é posta em prática nas Ciências Sociais, principalmente porque se opõe às rotinas de pensamento social corrente ou do senso comum esclarecido. Em segundo lugar, uma filosofia da ação (filosofia disposicional) que atualiza as potencialidades inscritas nos corpos dos agentes e na estrutura das situações nas quais eles atuam.
Essa filosofia da ação é condensada por um conjunto de conceitos sociológicos que estão dispersos em toda a sua produção científica. Dentre os quais se destaca a noção de habitus que, segundo Bourdieu (2003, p. 38), é a ideia pela qual ele tentou demonstrar como se poderia escapar das alternativas estéreis do objetivismo e do subjetivismo, do mecanicismo e finalismo, nas quais as teorias da ação permaneciam aprisionadas. Partindo dessa linha de pensamento, Bourdieu (2003, p. 53) propõe uma teoria da prática, que é definida por ele como uma ciência da dialética da interioridade e da exterioridade, ou seja, da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade, concepção se encontra na gênese do conceito de habitus.
O habitus é uma categoria de análise fundamental para os estudos sociológicos, pois não se refere apenas ao elemento individual, mas também a um grupo ou a uma classe, podendo ser definido como um sistema de disposições duráveis e transferíveis que constituem a estrutura da vida social. Ao integrar todas as experiências passadas, pode ser entendido como um sistema de esquemas de produção de práticas que funciona como uma matriz de percepções, apreciações e ações, tornando possível a realização de tarefas diferenciadas. Como um sistema de disposições inconscientes, o habitus constitui o produto de interiorização das estruturas objetivas tendendo a produzir práticas e carreiras objetivamente ajustadas às mesmas. Portanto, a história da vida de um indivíduo pode ser vista como uma variante do habitus de seu grupo ou de sua classe, na medida em que seu estilo pessoal aparece como um desvio codificado em relação ao estilo de sua época e de sua classe ou grupo social.
Na tentativa de compreender as implicações da noção de habitus, Bourdieu tentou analisar as relações entre estes e os campos sociais. O conceito de campo suporta o de habitus e se constitui noutra ferramenta conceitual importante para os estudos sociológicos. O campo é uma rede de relações objetivas entre posições sociais definidas objetivamente em sua existência e que fornecem determinações que elas repõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições por sua situação social atual e potencial e por sua posição relativa em relação a outras posições. Visto assim, o campo é um espaço estruturado a partir de posições de poder e disputas simbólicas no qual pode ser constatada a existência de leis genéricas.
Nessa mesma lógica, as práticas sociais são definidas pelo autor como “...o resultado do aparecimento de um habitus, sinal incorporado de uma trajetória social, capaz de opor uma inércia maior ou menor às forças sociais, e de um campo social que funciona, nesse aspecto, como um espaço de obrigações (violências) que quase sempre possuem a propriedade de operar com a cumplicidade do habitus sobre o qual se exercem” (Bourdieu, 2003, p. 38). Portanto, as práticas são resultantes, por intermédio do habitus, da relação dialética entre uma estrutura e uma conjuntura, entendidas como as condições de atualização deste habitus, sendo este um estado particular da estrutura.
Os habitus são diferenciados assim como as posições das quais são produtos, entretanto também são operadores de distinções. A distinção social é um tema caro ao pensamento de Pierre Bourdieu, que lhe dedicou um estudo amplo. Publicado originalmente em 1979, em A distinção (BOURDIEU, 2007), o autor faz um estudo ao mesmo tempo teórico e empírico em que utiliza e põe à prova vários conceitos sociológicos. Dotados de um habitus, os indivíduos são portadores de uma espécie de senso prático, de princípios geradores de práticas distintas e distintivas, servindo como esquemas classificatórios e princípios de visão e de divisão de gostos diferenciados. Assim, ao longo da obra, o autor demonstra como determinados traços vistos como naturais num indivíduo são, na verdade, produto de uma rede de relações e trocas no espaço social, pois o que comumente chamamos de distinção social, uma certa qualidade considerada como inata, é de fato diferença, separação, uma propriedade relacional que só existe em relação a outras propriedades.
A ideia de diferença, assinalada pelo autor, está no fundamento da noção de espaço social como um conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores uma às outras, contendo em si o princípio de uma apreensão relacional do mundo social e se apresenta vinculada à ideia central de distinção. O sistema social não é somente um sistema de diferenças objetivas. Os indivíduos percebem-se uns aos outros e se comparam, quando as diferenças entre eles entram em sistemas simbólicos surge, então, o espaço de distinções. Sua tese central é que esse espaço de distinções simbólicas traduz e reproduz o espaço das diferenças materiais, que uma vez percebidas, classificadas e apreciadas, funcionam como traços distintivos, afastamentos estilísticos em sistemas de diferenças, tornando-se simbólicas. Pode-se afirmar, então, que os indivíduos e os grupos existem e subsistem na e pela diferença.
O modelo de A distinção, no qual Bourdieu (2007, p. 118-119) representa as diferenças dos agentes por meio de um diagrama, define distâncias que afirmam encontros, afinidades, simpatias e desejos. Por outro lado, a proximidade no espaço social predispõe aproximação. O espaço social é construído de modo que os agentes ou grupos sociais são distribuídos conforme a posição que ocupam nas distribuições estatísticas, de acordo com dois princípios de diferenciação que prevalecem nas sociedades mais desenvolvidas: o capital econômico e o capital cultural[1]. De modo geral, o espaço de posições sociais, pela intermediação do espaço de disposições, se retraduz em um espaço de tomadas de posição. A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus. Assim, uma das funções desse conceito é a de dar conta de unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes.
Essas observações sobre a aplicação dos conceitos propostos por Bourdieu são fundamentais para compreender como o autor concebe a relação entre indivíduo e sociedade. Nesse ponto, se concentra também a importância de sua teoria para os estudos que tratam sobre trajetórias de indivíduos ou grupos. É preciso então fazer referência ao artigo A ilusão biográfica (Bourdieu, 2004), texto incorporado como apêndice em Razões práticas, no qual o autor discute sobre a história de vida, uma das noções do senso comum que entrou no universo do saber entre os cientistas sociais. Para o autor, falar em história de vida é pressupor que a vida é um conjunto de acontecimentos de uma existência individual concebido como história e narrativas dessa história.
Aceitar essa teoria da narrativa é conceber a filosofia da história com o sentido de sucessão de eventos históricos, já que a narrativa biográfica ou autobiográfica propõe eventos que, mesmo não se desenvolvendo todos, tendem ou pretendem organizar-se em sequências cronologicamente ordenadas e conforme certos acontecimentos que são selecionados e que lhes são dados conexão. No que se refere à narrativa biográfica ou autobiográfica, o autor chama atenção para o fato de que a vida não pode ser concebida como um todo coerente e orientado que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma intenção subjetiva e objetiva de um projeto. Essa concepção leva à construção da noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou grupo em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes.
Essa concepção de trajetória aparece também em As regras da arte (BOURDIEU, 1996), obra densa em que utiliza as mesmas categorias sociológicas para analisar, dentre outras coisas, um romance de Gustave Flaubert. A literatura é, então, tomada por Bourdieu como metáfora do mundo social, pois num romance, assim como na vida real, os personagens constroem suas carreiras a partir do espaço social. Isto porque, para Bourdieu, é preciso compreender o campo com o qual cada um se fez. Por isso é que em Esboço de auto-análise (BOURDIEU, 2005), o sociólogo se preocupou em escrever sua história social, apresentando-a de uma forma muito singular, com base em sua trajetória social, experiências, expectativas e desilusões, fazendo uso de sua própria teoria.
Bourdieu redigiu Esboço de auto-análise tendo em mente as questões que procurava responder ao examinar a trajetória dos escritores e artistas como Gustave Flaubert, Charles Baudelaire e Édouard Manet. O livro pode ser visto como uma das maneiras de por à prova sua concepção de trajetória social, e serve como um modelo de aplicação dessa proposta metodológica, por meio da qual o autor afirma que para estudar um autor é importante saber sobre sua trajetória e obra, para poder descobrir quais razões intelectuais e políticas conduziram seu pensamento. Na visão de Bourdieu, cada autor só existe e subsiste de acordo com as limitações do campo, criando seu próprio projeto criador em função da sua percepção das possibilidades disponíveis e inscritas em seu habitus por certa trajetória e também pela escolha ou recusa dos possíveis. Para compreender uma obra cultural é preciso compreender também o campo de produção e a posição do produtor nesse espaço.

Relação indivíduo-sociedade em Norbert Elias

Norbert Elias em Amsterdam, 1983. Foto: Gerard J. Holzmann.

Na teoria sociológica desenvolvida por Norbert Elias a relação indivíduo-sociedade aparece na forma de um profundo e exaustivo questionamento, a ponto do autor lhe dedicar um livro inteiro sobre o tema. É em A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994), obra publicada originalmente em 1987, que o autor aponta várias questões sobre o tema que vinham sendo levantadas por ele desde 1939, quando publicou sua obra clássica intitulada O processo civilizador (ELIAS, 1990). No início de A sociedade dos indivíduos, o autor afirma que faltam modelos conceituais e uma visão global para tratar da relação indivíduo-sociedade, pois as noções apresentadas nas teorias sociológicas clássicas não levam em conta a interdependência existente entre indivíduo e sociedade. Uma das críticas a esse respeito é o tratamento do indivíduo como “meio” e da sociedade como “fim”. Tal visão prejudicaria o entendimento da relação entre indivíduo e sociedade e o avanço de uma conceituação mais aprimorada. Para o sociólogo alemão, tal relação é uma algo muito singular que não apresenta analogia em nenhuma outra esfera de existência. Na compreensão desse e muitos outros fenômenos, “... é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções” (ELIAS, 1994, p. 25) [grifo do autor].
Na visão de Norbert Elias, uma compreensão clara da relação indivíduo-sociedade só se concretizaria a partir do momento em que tanto o processo de individualização quanto a historicidade forem incluídos na “teoria da sociedade”. Essas duas instâncias, somadas ao conceito de habitus social, entendido como a composição social do indivíduo, que constitui o solo no qual se assentam as suas características pessoais, que o diferencia dos outros membros de sua sociedade. Assim, o autor lança uma crítica à ideia da existência de um “eu” único e exclusivo que habita em cada indivíduo. Pois, por mais autêntica ou verdadeira que seja essa ideia, enquanto expressão da estrutura especial da consciência e dos indivíduos num certo estágio do movimento da civilização, ela é inadequada.
Nesse sentido, segundo Elias (1994, p. 35), os instrumentos do pensamento humano não são suficientemente móveis para tratar adequadamente de fenômenos como a relação indivíduo-sociedade. Uma visão mais detalhada desse tipo de inter-relação é conceito de rede, exemplificado na rede de tecido. Nessa rede, os fios se ligam uns aos outros. Nem a totalidade da rede, nem a forma assumida por cada fio podem ser compreendidas em termos de um único fio ou de todos eles isoladamente considerados. A rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. O movimento dentro da rede nada mais é do que as relações interpessoais. O entendimento dessas questões foi prejudicado pela especialização e divisão de objetos das ciências, fato que ocasionou um crescimento da dependência mútua entre os indivíduos e a diferenciação de cada um.
Essa noção de rede de interdependência aparece em A Sociedade de corte (ELIAS, 2001). Nessa densa obra, ao tomar a sociedade de corte como um exemplo histórico, o autor aponta a incoerência da oposição indivíduo e sociedade por meio do conceito de figuração. Esse conceito permite explicar de que modo e porque os indivíduos estão ligados entre si. Ao tentar compreender a realidade social em sua totalidade, o autor enfatiza as redes ou estruturas de interdependências que se estabelecem entre os indivíduos e que se assemelham a um jogo. Assim, na construção e análise de uma conjuntura histórica, tem-se como premissa fundamental a inexistência de agentes sociais individualizados ou a ideia de uma sociedade “sobre os indivíduos”, mas uma rede de interdependências entre eles, que engendram códigos e comportamentos.
Por meio do conceito de figuração, ao desenvolver essa noção de rede, Norbert Elias contribui de forma significativa para o avanço da teoria sociológica. Outra obra de peso que segue esse modelo teórico é Mozart, sociologia de um gênio (ELIAS, 1995). Nela, o autor concebe a Sociologia como uma ciência que busca entender e explicar o que é incompreensível na vida social. Isso se torna nítido na escolha do subtítulo paradoxal da obra, que permite compreender também como o autor enxerga os estudos sobre trajetórias: “Não é meu propósito destruir o gênio ou reduzi-lo a outra coisa qualquer, mas tornar sua situação humana mais fácil de entender, e talvez ajudar, de maneira modesta, a responder à pergunta do que e deveria ter feito para evitar que acontecesse um destino como o de Mozart” (ELIAS, 1995, p. 19).
Em sua pesquisa, Elias analisa a vida do músico que desde a infância habituou-se ao sucesso se tornando consciente de sua genialidade e que, mais tarde, passou a não aceitar a condição subalterna de serviçal da corte do monarca-arcebispo de Salzburgo, sua cidade natal. Mozart sentia-se injustiçado ao compor para o serviço religioso, situação enquadrada às alternativas que um músico dispunha naquele momento, sendo as escolhas mais sensatas na avaliação de seu pai que também era músico. Para se libertar dos seus patronos e senhores, Mozart lutou com seus próprios recursos em prol de sua dignidade e sua obra musical, mas não conseguiu vencer.
O autor considera importante para a Sociologia buscar compreender os desejos e as pretensões de cada indivíduo frente à posição que estes ocupam na vida social. Elias (1995, p. 13) afirma que para se compreender alguém é preciso conhecer os anseios que este deseja satisfazer. Para o autor quase todos têm desejos claros, que são passíveis de serem satisfeitos, pois a vida faz sentido ou não para os indivíduos conforme conseguem realizar tais aspirações. Os desejos evoluem ao longo da vida de cada um através do convívio social e vão sendo definidos ao longo dos anos. Porém, isto pode ocorrer de repente, associado a uma experiência especialmente grave. Elias (1995, p. 36) também chama atenção para a postura que o pesquisador deve manter em sua pesquisa em relação a essas questões. Para ele o pesquisador precisa partir da perspectiva do eu e não do ele para entender os desejos individuais.
Outra questão interessante que aparece nesse ensaio sobre Mozart é a explicação do autor sobre o processo de transição da arte de artesão para a arte de artista. Para Elias (1995, p. 135) Arte de artesão é a arte feita por encomenda ou sob a proteção de um mecenas por um indivíduo considerado socialmente inferior e para atender às exigências de um grupo de gosto muito específico e hegemônico e, portanto, mais objetiva. Arte de artista é a modalidade na qual o autor, de nível social equiparável ao de seu público e respeitado como indivíduo dotado de talento criador, pode expressar-se com maior subjetividade.
Considerando essas diferenças, Elias (1995, p. 45-52) mostra como alterações da estrutura social podem favorecer a formação de um novo padrão de gosto e estilo redefinindo a relação entre o artista e seu público. No caso específico de seu estudo, Elias mostra como se deu a ascensão da burguesia à condição de público consumidor de cultura, a substituição do classicismo na música erudita pelo romantismo, e a mudança do subalterno artesão para a do artista livre e de nível social equivalente ao do consumidor de sua arte. Para o autor, a trajetória social de Mozart mostra claramente que a virada da arte de artesão para a criação artística livre foi um processo com muitos estágios intermediários.
Seguindo a mesma linha desse seu estudo sobre Mozart, em A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor (ELIAS, 2005), o autor analisa a produção de uma tela do pintor francês Jean-Antoine Watteau relacionando-a com o momento vivido pelo artista e as condições que permitiram sua criação. Segundo Elias (2005, p. 23-24), assim como Mozart, Watteau queria sua independência, porém teve mais sorte que o músico, pois conseguiu sua admissão à Academia Francesa em 1712. Nessa época o artista precisava doar uma obra-prima para ingressar na corporação e, então, entregou Peregrinação para Cítera, mas somente em 1717. Elias sabia detalhes precisos e conhecia uma vasta bibliografia sobre esse quadro, cujo tema apresentava três diferentes versões.

Aproximações entre os autores

Norbert Elias com Pierre Bourdieu, 1987. Foto: Stephen Mennell.

Os escritos de Norbert Elias lançam uma forte crítica à forma convencional como é concebida a relação entre indivíduo e sociedade tanto pelo senso-comum quanto pelo discurso científico promovido pela Sociologia. O autor trata de questões epistemológicas que remetem aos primórdios da Sociologia, período em que essa problemática já se colocava. Ao realizar essa tarefa, o autor aponta as principais dificuldades do sociólogo frente ao seu objeto de estudo. O autor lança mão da ideia de configuração para suprir a insuficiência dos conceitos sociológicos propostos pela Sociologia Clássica, colocando o problema da interdependência humana como tema central da teoria sociológica. Em muitos aspectos, essa iniciativa de Elias se assemelha às filosofia da ação promovida por Bourdieu, cujos conceitos sociológicos viabilizam uma saída alternativa às análise que priorizam ora o objetivismo ora subjetivismo, separadamente.
Um dos principais empreendimentos desses dois autores foi a atualização e utilização do conceito de habitus na teoria sociológica, conceito que ganhou um espaço ainda maior na obra de Bourdieu, que se preocupou várias vezes em definir o termo. Contudo, é preciso lembrar que o conceito de habitus possui uma longa tradição filosófica, antes de sua apropriação por Bourdieu. De origem latina, o termo habitus foi empregado pela tradição escolástica como tradução da noção grega de hexis, utilizada por Aristóteles para designar características do corpo e da alma adquiridas através de um processo de aprendizagem. Dentre os autores que utilizaram o termo antes do sociólogo francês, merece destaque o historiador da arte Erwin Panofsky e o próprio Elias. Em Arquitetura gótica e Escolástica (PANOFSKY, 2001), estudo apresentado em conferências em 1948 e publicado em 1951, Panofsky utiliza o conceito de hábito mental como o “princípio que rege a ação”. Ao retomar essa análise, Bourdieu estabelece um sentido mais preciso ao conceito e levanta um problema sociológico. Esse sentido é semelhante ao que aparece nas obras de Elias publicadas a partir de 1939, nas quais este define o habitus como “composição social dos indivíduos”, “segunda natureza” ou “saber social incorporado” (ELIAS, 1994).
Numa entrevista, quando perguntado sobre o que achava das comparações de suas análises àquelas feitas por Georg Simmel e por Norbert Elias, Pierre Bourdieu afirmou que só poderia ficar contente com essas comparações. Uma vez que o primeiro foi um autor que ele leu muito e cujas análises, principalmente aquelas sobre a cultura, também gostou. Contudo, Bourdieu ressalta que Simmel confiava demais em sua intuição, e que esta algumas vezes era muito superficial. Por outras razões, Bourdieu se sente mais próximo de Elias, que capta mecanismos ocultos ou invisíveis que tem sua base na existência de relações objetivas entre os indivíduos ou as instituições (BOURDIEU, 2000, p. 48).
Há uma forte semelhança entre os conceitos formulados por Elias e aqueles formulados por Bourdieu, isto porque em suas obras ambos se preocuparam em resolver a dualidade indivíduo e sociedade. A partir de uma leitura e análise apurada dos estudos desses autores é possível notar que ambos lançam uma perspectiva sobre essa relação dual. O ponto de vista de Norbert Elias em Mozart é muito semelhante ao procedimento metodológico que Pierre Bourdieu utilizou em Esboço de auto-análise. Além disso, assim como Bourdieu, Elias lança uma crítica à abordagem histórica que reproduz a ideologia dominante no momento em que supõe um caráter único aos acontecimentos e postula a liberdade individual como fundadora das práticas, por meio de atos voluntários e intenções livres.
Essa proximidade entre os autores aparece também no conceito de habitus. Porém, para Elias o hábito social pode ser entendido como aquilo que constituiria a base a partir da qual derivam as características pessoais que fornecem aos indivíduos a formação de sua identidade. Diferente de Bourdieu, Elias se prende às questões da historicidade e da genética do habitus, se preocupando em explicar a gênese dos habitus e porque estes evoluem e se transformam.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.

_____. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

_____. A sociologia de Pierre Bourdieu. Organizada por Renato Ortiz. São Paulo: Olho d’Água, 2003.

_____. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

_____. Esboço de uma teoria da prática, precedido de três estudos de etnologia Cabila. Oeiras, Portugal: Celta, 2002.

_____. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000. 

_____. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 5 ed. Campinas: Papirus, 2004.

ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

_____. A Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_____. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

_____. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

_____. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica: sobre a analogia entre arte, filosofia e teologia na Idade Média. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.







[1] Na teoria de Bourdieu, é possível distinguir quatro tipos de capital que permitem estruturar o espaço social: o capital econômico, que é constituído pelo conjunto de fatores de produção e bens econômicos; o capital cultural, composto pelo conjunto de qualificações intelectuais e conhecimentos transmitidos e/ou adquiridos, podendo existir em estado incorporado, como disposição duradoura do corpo, em estado objetivo, como bem cultural ou e em estado institucionalizado, sancionado por instituições; o capital social, que corresponde ao conjunto de relações sociais de que dispõe o indivíduo ou grupo; e o capital simbólico, que afirma respeito ao conjunto de rituais ligados à honra, ao prestígio e ao reconhecimento.

terça-feira, 21 de março de 2017

A música na abordagem de Georg Simmel

Luis Afonso Salturi

Artigo publicado originalmente na revista Sociologia em Rede, v. 6, p. 325-328, 2016.


Trata-se da primeira tese de doutorado do filósofo e sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), autor cuja produção intelectual tem sido redescoberta recentemente pelas Ciências Sociais. Antes de ser publicada em 1882, essa obra foi recusada pela academia alemã por se tratar de um estudo que não se encaixava nos moldes filosóficos e situar-se em uma área do conhecimento científico ainda em vias de desenvolvimento e reconhecimento. Isso fez com que o autor tivesse que apresentar outro estudo, desta vez sobre a natureza da matéria na monadologia física de Kant, para garantir sua titulação em Filosofia.

Essa tradução argentina inclui um prefácio escrito pelo sociólogo Esteban Vernik, que é especialista na obra de Georg Simmel no país. O livro é composto por um texto único dividido em dezesseis pequenas seções interligadas, as quais tratam sobre os seguintes temas: Darwin e a linguagem, O canto do pássaro, A origem do canto e da linguagem, Os afetos, A música, o compasso e o ritmo, Música instrumental, Povos naturais e instrumentos do vento, Consequências, Pensamento e linguagem – música e ânimo, Desenvolvimento da música, A música e as mulheres, O estribilho, A canção popular, Excitação e apaziguamento através da música, Desenvolvimento técnico da música e O canto tirolês. A publicação conta também com dois anexos, sendo o primeiro um questionário com quinze perguntas sobre o canto tirolês dos habitantes do Alpes, e o segundo a bibliografia com notas de tradução. O questionário sobre o canto tirolês foi publicado na edição de 1879 do Anuário do Clube Suíço e dirigido aos conhecedores da vida alpina, com o intuito de obter informações.

No que se refere às características teórico-metodológicas desse estudo, Simmel busca afirmar suas hipóteses tendo como suporte evidências antropológicas e psicológicas presentes nas fontes da pesquisa. O autor não realizou trabalho de campo, as evidências antropológicas foram extraídas de crônicas etnográficas de viajantes de distintas partes do mundo e de documentos de coleções museológicas. Já as evidências psicológicas são provenientes principalmente da experiência do autor com a erudição clássica filosófica, da qual toma como referência fontes latinas e gregas, nos idiomas originais.

De modo geral, o que se observa é que a maioria das informações foi obtida a partir de estudos realizados por terceiros, já que o autor utiliza fontes etnográficas, históricas, filosóficas e literárias de forma comparativa em suas argumentações. Simmel relaciona práticas musicais de povos infinitamente distantes um dos outros, tanto no espaço como no tempo. Um exemplo disso ocorre ao tratar sobre os afetos, na quarta seção, na qual cita autores tão diversos como: Wilhelm von Humboldt, Louis de Freycinet, Ferdinand Von Hochstetter, Carl Friedrich Philipp von Martius, Eduard Pöppig, Platão, Herder e Kant.

Ao longo do texto, a partir de fontes escritas, são mencionadas práticas musicais de diversos povos: tibetanos, turcos, árabes, persas, taitianos, polinésios, melanésios, brasileiros, patagônios, gregos, italianos, caribenhos, neozelandeses, australianos, chineses, indianos, guineanos, mexicanos, jamaicanos, senegaleses e tiroleses. Mesmo buscando as origens da música, Simmel chama atenção sobre a ideia equivocada da universalidade musical, pois nem todas as sociedades produzem ritmos semelhantes ou possuem os mesmos instrumentos musicais. O autor explica essas diferenças argumentando que cada povo faz uso da música de modo bem característico e em diferentes situações.

Simmel apresenta um trabalho de inspiração darwiniana sobre as origens da música, mas opta pelo ponto de vista social, concentrando-se no papel que a melodia e o ritmo ocupam na vida cotidiana de diferentes sociedades. Em primeiro lugar, o autor critica as considerações que Charles Darwin apresenta em “A origem do homem e a seleção sexual” (1875), para o qual a música é tida como fonte da linguagem falada. Simmel afirma que ocorre justamente o contrário, pois a música tem sua base na linguagem falada, sendo um complemento do desenvolvimento desta e uma manifestação das relações sociais. O autor se liga ao filósofo e psicólogo Heymann Steinthal e seu livro “A origem da linguagem em relação às questões fundamentais de todo o conhecimento” (1877), sobretudo à crítica que Steinthal faz ao discípulo alemão de Darwin, o zoólogo Gustav Jäger, que estabelece uma continuidade entre a “linguagem dos animais” e a “linguagem humana”.

Em segundo lugar, o autor critica a consideração darwiniana apresentada em “Sobre a expressão das emoções no homem e nos animais” (1872), de que nos seres humanos, assim como nos pássaros, o canto serve especialmente para saciar o apetite sexual. Nesse ponto, Simmel polemiza com a visão de Gustav Jäger sobre o canto tirolês, para o qual o canto sem palavras dos homens, como o dos pássaros, serve como cortejo para encantar as fêmeas. Baseando-se no canto tirolês dos habitantes das montanhas, sua investigação indica que o apetite sexual pode ser um entre muitos outros motivos que levam os seres humanos a expressarem-se por meio do canto.

Em seu estudo, Simmel busca o sentido profundo da música em seu estado original, tentando descobrir como e porque os indivíduos se apropriam dela para utilizá-la em diversos contextos e situações. No centro desta exposição se encontra a musicalidade, que é a condição de ouvir e compor música. O autor afirma que a música surge como uma exteriorização dos mais variados sentimentos humanos. Sua origem está no ritmo, que imprime sobre a fala e sobre o movimento uma ritmização das ações.

Simmel sustenta que o canto, em sua origem, foi linguagem falada, tendo surgido a partir da elevação que os afetos produziram sobre os atos da fala e dos movimentos, por meio do ritmo e da modulação melódica. Nesse ponto, o autor toma a afirmativa de Steinthal de que “o ser humano é pensamento e o pensamento é originariamente falado”. Outro motivo levantado para o surgimento do canto pode ser o sentimento geral de bem estar e harmonia, pois o homem fala mais quando está em harmonia do que quando se encontra pressionado.

A música instrumental nasce espontaneamente do bater palmas, do choque rítmico das mãos e dos instrumentos que elas sustentam. A dança surge dos passos, do compasso e do toque no solo, também como exteriorização de um sentimento interior. O canto, a música instrumental e a dança têm um embasamento comum e que muitas vezes pode ser identificado no mesmo ato, pois nascem de um estado de alegria ou de tristeza. Portanto, esses apontamentos levam à afirmação de que os seres humanos são músicos pré-existenciais, porque interpretam a “música” de suas sensações.

Resenha de livro

SIMMEL, Georg. Estudios psicológicos y etnológicos sobre música. Buenos Aires: Gorla, 2003. 80 p.