terça-feira, 21 de março de 2017

A música na abordagem de Georg Simmel

Luis Afonso Salturi

Artigo publicado originalmente na revista Sociologia em Rede, v. 6, p. 325-328, 2016.


Trata-se da primeira tese de doutorado do filósofo e sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), autor cuja produção intelectual tem sido redescoberta recentemente pelas Ciências Sociais. Antes de ser publicada em 1882, essa obra foi recusada pela academia alemã por se tratar de um estudo que não se encaixava nos moldes filosóficos e situar-se em uma área do conhecimento científico ainda em vias de desenvolvimento e reconhecimento. Isso fez com que o autor tivesse que apresentar outro estudo, desta vez sobre a natureza da matéria na monadologia física de Kant, para garantir sua titulação em Filosofia.

Essa tradução argentina inclui um prefácio escrito pelo sociólogo Esteban Vernik, que é especialista na obra de Georg Simmel no país. O livro é composto por um texto único dividido em dezesseis pequenas seções interligadas, as quais tratam sobre os seguintes temas: Darwin e a linguagem, O canto do pássaro, A origem do canto e da linguagem, Os afetos, A música, o compasso e o ritmo, Música instrumental, Povos naturais e instrumentos do vento, Consequências, Pensamento e linguagem – música e ânimo, Desenvolvimento da música, A música e as mulheres, O estribilho, A canção popular, Excitação e apaziguamento através da música, Desenvolvimento técnico da música e O canto tirolês. A publicação conta também com dois anexos, sendo o primeiro um questionário com quinze perguntas sobre o canto tirolês dos habitantes do Alpes, e o segundo a bibliografia com notas de tradução. O questionário sobre o canto tirolês foi publicado na edição de 1879 do Anuário do Clube Suíço e dirigido aos conhecedores da vida alpina, com o intuito de obter informações.

No que se refere às características teórico-metodológicas desse estudo, Simmel busca afirmar suas hipóteses tendo como suporte evidências antropológicas e psicológicas presentes nas fontes da pesquisa. O autor não realizou trabalho de campo, as evidências antropológicas foram extraídas de crônicas etnográficas de viajantes de distintas partes do mundo e de documentos de coleções museológicas. Já as evidências psicológicas são provenientes principalmente da experiência do autor com a erudição clássica filosófica, da qual toma como referência fontes latinas e gregas, nos idiomas originais.

De modo geral, o que se observa é que a maioria das informações foi obtida a partir de estudos realizados por terceiros, já que o autor utiliza fontes etnográficas, históricas, filosóficas e literárias de forma comparativa em suas argumentações. Simmel relaciona práticas musicais de povos infinitamente distantes um dos outros, tanto no espaço como no tempo. Um exemplo disso ocorre ao tratar sobre os afetos, na quarta seção, na qual cita autores tão diversos como: Wilhelm von Humboldt, Louis de Freycinet, Ferdinand Von Hochstetter, Carl Friedrich Philipp von Martius, Eduard Pöppig, Platão, Herder e Kant.

Ao longo do texto, a partir de fontes escritas, são mencionadas práticas musicais de diversos povos: tibetanos, turcos, árabes, persas, taitianos, polinésios, melanésios, brasileiros, patagônios, gregos, italianos, caribenhos, neozelandeses, australianos, chineses, indianos, guineanos, mexicanos, jamaicanos, senegaleses e tiroleses. Mesmo buscando as origens da música, Simmel chama atenção sobre a ideia equivocada da universalidade musical, pois nem todas as sociedades produzem ritmos semelhantes ou possuem os mesmos instrumentos musicais. O autor explica essas diferenças argumentando que cada povo faz uso da música de modo bem característico e em diferentes situações.

Simmel apresenta um trabalho de inspiração darwiniana sobre as origens da música, mas opta pelo ponto de vista social, concentrando-se no papel que a melodia e o ritmo ocupam na vida cotidiana de diferentes sociedades. Em primeiro lugar, o autor critica as considerações que Charles Darwin apresenta em “A origem do homem e a seleção sexual” (1875), para o qual a música é tida como fonte da linguagem falada. Simmel afirma que ocorre justamente o contrário, pois a música tem sua base na linguagem falada, sendo um complemento do desenvolvimento desta e uma manifestação das relações sociais. O autor se liga ao filósofo e psicólogo Heymann Steinthal e seu livro “A origem da linguagem em relação às questões fundamentais de todo o conhecimento” (1877), sobretudo à crítica que Steinthal faz ao discípulo alemão de Darwin, o zoólogo Gustav Jäger, que estabelece uma continuidade entre a “linguagem dos animais” e a “linguagem humana”.

Em segundo lugar, o autor critica a consideração darwiniana apresentada em “Sobre a expressão das emoções no homem e nos animais” (1872), de que nos seres humanos, assim como nos pássaros, o canto serve especialmente para saciar o apetite sexual. Nesse ponto, Simmel polemiza com a visão de Gustav Jäger sobre o canto tirolês, para o qual o canto sem palavras dos homens, como o dos pássaros, serve como cortejo para encantar as fêmeas. Baseando-se no canto tirolês dos habitantes das montanhas, sua investigação indica que o apetite sexual pode ser um entre muitos outros motivos que levam os seres humanos a expressarem-se por meio do canto.

Em seu estudo, Simmel busca o sentido profundo da música em seu estado original, tentando descobrir como e porque os indivíduos se apropriam dela para utilizá-la em diversos contextos e situações. No centro desta exposição se encontra a musicalidade, que é a condição de ouvir e compor música. O autor afirma que a música surge como uma exteriorização dos mais variados sentimentos humanos. Sua origem está no ritmo, que imprime sobre a fala e sobre o movimento uma ritmização das ações.

Simmel sustenta que o canto, em sua origem, foi linguagem falada, tendo surgido a partir da elevação que os afetos produziram sobre os atos da fala e dos movimentos, por meio do ritmo e da modulação melódica. Nesse ponto, o autor toma a afirmativa de Steinthal de que “o ser humano é pensamento e o pensamento é originariamente falado”. Outro motivo levantado para o surgimento do canto pode ser o sentimento geral de bem estar e harmonia, pois o homem fala mais quando está em harmonia do que quando se encontra pressionado.

A música instrumental nasce espontaneamente do bater palmas, do choque rítmico das mãos e dos instrumentos que elas sustentam. A dança surge dos passos, do compasso e do toque no solo, também como exteriorização de um sentimento interior. O canto, a música instrumental e a dança têm um embasamento comum e que muitas vezes pode ser identificado no mesmo ato, pois nascem de um estado de alegria ou de tristeza. Portanto, esses apontamentos levam à afirmação de que os seres humanos são músicos pré-existenciais, porque interpretam a “música” de suas sensações.

Resenha de livro

SIMMEL, Georg. Estudios psicológicos y etnológicos sobre música. Buenos Aires: Gorla, 2003. 80 p.





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