Luis Afonso Salturi
Artigo publicado originalmente na revista Sociologia em Rede, v. 6, p. 325-328, 2016.
Trata-se da primeira tese de doutorado do filósofo e
sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), autor cuja produção intelectual tem
sido redescoberta recentemente pelas Ciências Sociais. Antes de ser publicada em
1882, essa obra foi recusada pela academia alemã por se tratar de um estudo que
não se encaixava nos moldes filosóficos e situar-se em uma área do conhecimento
científico ainda em vias de desenvolvimento e reconhecimento. Isso fez com que
o autor tivesse que apresentar outro estudo, desta vez sobre a natureza da
matéria na monadologia física de Kant, para garantir sua titulação em Filosofia.
Essa tradução argentina inclui um prefácio escrito
pelo sociólogo Esteban Vernik, que é especialista na obra de Georg Simmel no
país. O livro é composto por um texto único dividido em dezesseis pequenas
seções interligadas, as quais tratam sobre os seguintes temas: Darwin e a linguagem, O canto do pássaro, A origem do canto e da linguagem, Os afetos, A música, o
compasso e o ritmo, Música
instrumental, Povos naturais e
instrumentos do vento, Consequências,
Pensamento e linguagem – música e ânimo,
Desenvolvimento da música, A música e as mulheres, O estribilho, A canção popular, Excitação e
apaziguamento através da música, Desenvolvimento
técnico da música e O canto tirolês.
A publicação conta também com dois anexos, sendo o primeiro um questionário com
quinze perguntas sobre o canto tirolês dos habitantes do Alpes, e o segundo a
bibliografia com notas de tradução. O questionário sobre o canto tirolês foi
publicado na edição de 1879 do Anuário do Clube Suíço e dirigido aos
conhecedores da vida alpina, com o intuito de obter informações.
No que se refere às características teórico-metodológicas
desse estudo, Simmel busca afirmar suas hipóteses tendo como suporte evidências
antropológicas e psicológicas presentes nas fontes da pesquisa. O autor não
realizou trabalho de campo, as evidências antropológicas foram extraídas de
crônicas etnográficas de viajantes de distintas partes do mundo e de documentos
de coleções museológicas. Já as evidências psicológicas são provenientes principalmente
da experiência do autor com a erudição clássica filosófica, da qual toma como
referência fontes latinas e gregas, nos idiomas originais.
De modo geral, o que se observa é que a maioria das
informações foi obtida a partir de estudos realizados por terceiros, já que o
autor utiliza fontes etnográficas, históricas, filosóficas e literárias de
forma comparativa em suas argumentações. Simmel relaciona práticas musicais de
povos infinitamente distantes um dos outros, tanto no espaço como no tempo. Um
exemplo disso ocorre ao tratar sobre os afetos, na quarta seção, na qual cita autores
tão diversos como: Wilhelm von Humboldt, Louis de Freycinet, Ferdinand Von
Hochstetter, Carl Friedrich Philipp von Martius, Eduard Pöppig, Platão, Herder
e Kant.
Ao longo do texto, a partir de fontes escritas, são mencionadas
práticas musicais de diversos povos: tibetanos, turcos, árabes, persas,
taitianos, polinésios, melanésios, brasileiros, patagônios, gregos, italianos,
caribenhos, neozelandeses, australianos, chineses, indianos, guineanos,
mexicanos, jamaicanos, senegaleses e tiroleses. Mesmo buscando as origens da
música, Simmel chama atenção sobre a ideia equivocada da universalidade musical,
pois nem todas as sociedades produzem ritmos semelhantes ou possuem os mesmos
instrumentos musicais. O autor explica essas diferenças argumentando que cada
povo faz uso da música de modo bem característico e em diferentes situações.
Simmel apresenta um trabalho de inspiração
darwiniana sobre as origens da música, mas opta pelo ponto de vista social,
concentrando-se no papel que a melodia e o ritmo ocupam na vida cotidiana de
diferentes sociedades. Em primeiro lugar, o autor critica as considerações que
Charles Darwin apresenta em “A origem do homem e a seleção sexual” (1875), para
o qual a música é tida como fonte da linguagem falada. Simmel afirma que ocorre
justamente o contrário, pois a música tem sua base na linguagem falada, sendo um
complemento do desenvolvimento desta e uma manifestação das relações sociais. O
autor se liga ao filósofo e psicólogo Heymann Steinthal e seu livro “A origem
da linguagem em relação às questões fundamentais de todo o conhecimento” (1877),
sobretudo à crítica que Steinthal faz ao discípulo alemão de Darwin, o zoólogo
Gustav Jäger, que estabelece uma continuidade entre a “linguagem dos animais” e
a “linguagem humana”.
Em segundo lugar, o autor critica a consideração
darwiniana apresentada em “Sobre a expressão das emoções no homem e nos
animais” (1872), de que nos seres humanos, assim como nos pássaros, o canto
serve especialmente para saciar o apetite sexual. Nesse ponto, Simmel polemiza
com a visão de Gustav Jäger sobre o canto tirolês, para o qual o canto sem
palavras dos homens, como o dos pássaros, serve como cortejo para encantar as
fêmeas. Baseando-se no canto tirolês dos habitantes das montanhas, sua
investigação indica que o apetite sexual pode ser um entre muitos outros
motivos que levam os seres humanos a expressarem-se por meio do canto.
Em seu estudo, Simmel busca o sentido profundo da
música em seu estado original, tentando descobrir como e porque os indivíduos
se apropriam dela para utilizá-la em diversos contextos e situações. No centro
desta exposição se encontra a musicalidade, que é a condição de ouvir e compor
música. O autor afirma que a música surge como uma exteriorização dos mais
variados sentimentos humanos. Sua origem está no ritmo, que imprime sobre a fala
e sobre o movimento uma ritmização das ações.
Simmel sustenta que o canto, em sua origem, foi
linguagem falada, tendo surgido a partir da elevação que os afetos produziram
sobre os atos da fala e dos movimentos, por meio do ritmo e da modulação
melódica. Nesse ponto, o autor toma a afirmativa de Steinthal de que “o ser
humano é pensamento e o pensamento é originariamente falado”. Outro motivo levantado
para o surgimento do canto pode ser o sentimento geral de bem estar e harmonia,
pois o homem fala mais quando está em harmonia do que quando se encontra
pressionado.
A música instrumental nasce espontaneamente do bater
palmas, do choque rítmico das mãos e dos instrumentos que elas sustentam. A
dança surge dos passos, do compasso e do toque no solo, também como
exteriorização de um sentimento interior. O canto, a música instrumental e a dança
têm um embasamento comum e que muitas vezes pode ser identificado no mesmo ato,
pois nascem de um estado de alegria ou de tristeza. Portanto, esses
apontamentos levam à afirmação de que os seres humanos são músicos pré-existenciais,
porque interpretam a “música” de suas sensações.
Resenha de livro
SIMMEL, Georg. Estudios psicológicos y etnológicos sobre
música. Buenos Aires: Gorla, 2003. 80 p.
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