Luis Afonso Salturi
Artigo publicado originalmente na revista MovimentAção v. 03, n. 04, pp. 162-178.
Georg Simmel, 1914 |
O interesse pela obra de Georg Simmel e as traduções
brasileiras
O filósofo e sociólogo
alemão Georg Simmel (1858-1918) ingressou na Universidade de Berlim em 1876,
onde estudou História, Filosofia, Psicologia e Etnologia e História da Arte.
Desde a época de estudante, se interessava por diversas disciplinas. Dono de uma
grande liberdade intelectual, Simmel acreditava que a justificação última da vida
acadêmica radicava na produção material que promove o cultivo dos indivíduos educados, como apontam seus
ensaios sobre a cultura (SIMMEL, 2013). Possuidor de uma carreira prestigiosa
como professor e palestrante, sua extraordinária originalidade pode ser
associada à sua posição como pensador ilhado, considerando os aspectos
positivos e negativos dessa situação em que se encontrava. Seu fracasso
profissional se manifestou institucionalmente ao tentar obter a designação de
professor titular. Somente quatro anos antes de seu falecimento, em 28 de
setembro de 1918, vitimado por um câncer de fígado, que Simmel conseguiu adentrar
numa cátedra, na Universidade de Estraburgo, cidade para onde se mudou.
O filósofo espanhol
Ortega y Gasset (1883-1955), um dentre os vários intelectuais que foram seus alunos,
ao comentar sobre a heteronomia de objetos da obra simmeliana, comparou Simmel
a um “esquilo filosófico” que pega várias nozes e rói uma a uma, um pouco de
cada. Isto porque Simmel, em suas análises, tratava os temas que escolhia como
uma plataforma de decolagem para executar exercícios mentais excelentes e
originais, optando preferencialmente pela forma ensaística. Os elementos e as
transformações relacionados à vida moderna foram temas presentes em vários dos seus
ensaios, nos quais as análises do social e dos bens culturais ganharam
destaque. Essas caraterísticas explicam em parte porque sua contribuição como
pensador ultrapassa as fronteiras entre as disciplinas humanísticas e porque sua
obra vem sendo resgatada nas últimas décadas.
Nos
últimos anos, a produção intelectual de Georg Simmel tem despertado grande
interesse no ambiente acadêmico brasileiro, principalmente na área das Ciências
Sociais. As recentes traduções em língua portuguesa das obras desse autor se
devem tanto à redescoberta de sua obra teórica, quanto aos interesses
promovidos pelos especialistas brasileiros e estrangeiros, que reverenciam cada
vez mais a atualidade de seus escritos. Situação esta, que abranda a lacuna
gerada pelo modo fragmentário como a obra de Georg Simmel foi publicada no
Brasil. É preciso lembrar ainda que muitos cientistas sociais brasileiros
tiveram acesso ao pensamento do autor alemão a partir de publicações em língua
estrangeira, grande parte disponível em coletâneas em inglês. Contudo, dentre
os estudos de especialistas publicados em português, vale destacar o denso
trabalho de Leopoldo Waizbort (WAIZBORT, 2001) e a obra introdutória de Frédéric Vandenberghe
(VANDENBERGHE, 2005), como sendo os mais importantes atualmente. Além dessas
obras, tem crescido o número de traduções dos escritos de Georg Simmel, tanto
em formato de livros quanto em artigos publicados em revistas especializadas.
No que diz respeito aos
artigos, já na década de 1970, alguns textos foram traduzidos para o português
e lançados em coletâneas temáticas, dentre eles destacam-se: A metrópole e a vida mental (SIMMEL,
1979), texto clássico da Sociologia Urbana, traduzido do inglês por Sérgio
Marques dos Reis, e O indivíduo e a díade
(SIMMEL, 1976), traduzido por Roberto Schwartz, também do inglês, mas cotejado
com o original alemão. Em meados da década de 1990, alguns ensaios importantes foram
traduzidos por Simone Carneiro Maldonado e publicados na revista Política e Trabalho (SIMMEL, 1996a,
1996b, 1998a, 1998b e 1999). Nos últimos anos, podem-se mencionar como
relevantes o ensaio Sociologia da
refeição, publicado em na revista Estudos
Históricos (SIMMEL, 2004), e até mesmo a nova tradução do texto clássico da
Sociologia Urbana mencionado, realizada desta vez por Leopoldo Waizbort
(SIMMEL, 2005), um dos principais especialistas da obra do autor no Brasil.
Sobre a
publicação de coletâneas com textos de Georg Simmel em formato de livro, estas
tiveram início com o volume organizado por Evaristo de Moraes Filho, para a Coleção Grandes Cientistas Sociais, sob
a coordenação de Florestan Fernandes (SIMMEL, 1983). Além dela, outras coletâneas de ensaios temáticos
são: Filosofia do Amor (SIMMEL, 2001), traduzida do
francês por Eduardo Brandão, Simmel e a
Modernidade (SIMMEL,
2005), organizada
por Jessé Souza e Berthold Ölze, Georg
Simmel: sentidos, segredos (SIMMEL, 2011), compilação dos artigos traduzidos por Simone Carneiro
Maldonado, e O conflito da cultura
moderna e outros escritos (SIMMEL, 2013), organizada por Arthur Bueno. É importante destacar ainda a
publicação de obras integrais de Georg Simmel, como Questões fundamentais da Sociologia (SIMMEL, 2006), Ensaios
sobre teoria da história (SIMMEL, 2011) e Schopenhauer &
Nietzsche (SIMMEL,
2013),
que demonstram o quanto tem crescido o interesse pela tradução das obras do
autor no país.
Após esse levantamento bibliográfico,
passo agora a examinar uma pequena parte da obra de Georg Simmel, na qual o
autor apresenta sua teoria social. Em seguida, analisarei aquelas cuja temática
gira em torno de elementos da vida moderna e da cultura.
O investimento de Georg Simmel na Sociologia
Na
última década do século XIX, a Sociologia começou a se libertar da crença no
progresso e no “dever-ser da sociedade” e passou a se concentrar na sociedade
do presente, enquanto uma ciência da vida moderna. Desde seu primeiro livro,
intitulado Soziale differenzierung: soziologische und
psychologische untersuchungen (Sobre a
diferenciação social: estudos sociológicos e psicológicos), publicado em
1890, Georg Simmel se destacou nesse
âmbito ainda amorfo da Sociologia. Em sua produção intelectual, o autor operou
uma metamorfose da “ética” para “ciência moral”, pois o que no campo da
filosofia era tratado como ética passou a ser tratado como ciência social, e a “ética”,
vista pela sua historicidade, transformou-se em “moral”. Sendo assim, na constituição
de um espaço novo, a Sociologia surgiu dessa forma estratégica (WAIZBORT, 2006, p. 509).
Em A teoria do conhecimento da ciência social,
ensaio introdutório de seu primeiro livro, Simmel (2004) apresenta uma discussão
epistemológica na qual a Sociologia é definida como uma “ciência eclética” que
opera com resultados da investigação da História, da Antropologia, da Estatística,
da Psicologia, como se tratasse de produtos semielaborados. Entendida como uma
ciência de “segunda potência”, a Sociologia criaria novas sínteses a partir
daquilo que para as outras ciências já são sínteses. Além de ressaltar a
importância da Sociologia, esse texto apresenta vários conceitos presentes ao
longo da produção teórica do autor, dentre os quais está a definição de
sociedade como o resultado das relações e interações entre os indivíduos.
No
artigo Como as formas sociais se mantêm,
publicado originalmente em 1897 na revista L’Anné
Sociologique, dirigida pelo sociólogo francês Émile Durkheim (1958-1917), Simmel (1983) formula o conceito de sociação para designar os modos pelos
quais os atores sociais se relacionam e apresenta um método a partir do qual a
Sociologia poderia se tornar uma ciência, com um campo de estudo específico e
diferenciado daqueles das outras disciplinas. Tal método consiste em abstrair a
forma de sociação dos estados concretos,
dos interesses e dos sentimentos que constituem seu conteúdo. Somente isolando
essa forma mediante a abstração é que se poderia constituir uma ciência da
sociedade. Assim, a Sociologia deveria buscar seus problemas nas formas de vida
social, sendo que seu domínio estaria nas formas sociais, que tomam os grupos
de indivíduos unidos para viver uns aos lados dos outros, ou uns para os
outros, ou então uns com os outros.
De modo
semelhante ao que acontece na teoria social do seu conterrâneo e contemporâneo,
o sociólogo Max Weber (1864-1920), na teoria sociológica simmeliana o indivíduo
é o elemento fundamental que constitui a sociedade. Isto porque Simmel entende
por sociedade não apenas um conjunto complexo de indivíduos e grupos unidos
numa mesma comunidade, mas toda a parte onde os indivíduos se encontram em
reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou passageira. Ao tratar
da relação indivíduo-sociedade, o autor explica porque a sociedade se coloca
como algo que domina as existências particulares. Diferentemente de Durkheim em
Da divisão do trabalho social
(DURKHEIM, 2004), Simmel salienta a importância do conflito para a união do
grupo e a necessidade da oposição entre os indivíduos, pois, para este, é da
própria luta que nasce a unidade.
Para se conseguir a definição de sociedade é preciso então convocar todas as
formas da sociação e forças que
mantêm unidos seus elementos.
A “grande” Sociologia
No primeiro
capítulo da obra Soziologie: untersuchungen
über die formen der vergesellschaftung (Sociologia: estudos sobre as formas de socialização), publicada
originalmente em 1908, em dois volumes e conhecida como a “grande” Sociologia, Simmel
(1926) afirma que “toda a ciência se funda numa abstração”. O que diferencia a Sociologia
das demais ciências histórico-sociais não é o objeto, mas o modo de
considerá-lo, pois a Sociologia faz da sociedade um conceito abstrato. O autor apresenta
vários conceitos que são de extrema importância para a compreensão de sua
teoria sociológica. Dentre os quais, está o de sociedade, que se caracteriza
pela distinção entre forma e conteúdo.
Podemos
entender por formas sociais os princípios
sintetizadores que selecionam elementos do material da experiência e que
modelam dentro de determinadas unidades. Já os conteúdos são tudo o que é capaz de originar a ação ou a recepção
de suas influências. É tudo o que existe nos indivíduos, que são os portadores
concretos e imediatos de toda a realidade histórica, como instinto, interesse,
fim, inclinação, estado ou movimento psíquico. São aspectos da existência que
se determinam em si mesmos e não contém nenhuma estrutura nem a possibilidade
de ser apreendidos em sua imediatez.
No capítulo
seguinte, o autor afirma que os grupos sociais possuem características
específicas conforme o número de elementos que os compõem. Enquanto alguns
desenvolvimentos necessários ou possíveis só podem ser realizados acima ou
abaixo de um determinado número de elementos, outros são impostos ao grupo por
certas modificações puramente quantitativas. Desse modo, os desenvolvimentos
grupais dependem de certas condições numéricas. O autor ainda comenta sobre o
tamanho e as características dos grupos, explica a diferença entre eles,
fornece exemplos de agrupamentos pequenos e grandes, e analisa o radicalismo e
a coesão.
No
segundo volume dessa obra, Simmel (1927) reúne um grupo de ensaios sob o título
O espaço e a sociedade. Fazem parte
desse capítulo as digressões sobre a limitação social, a Sociologia dos
sentidos e o estrangeiro, textos que apresentam análises a respeito da
socialização construídas sob um ponto de vista inovador. No ensaio
introdutório, o autor afirma que não são as formas de proximidade ou de
distância que produzem fenômenos como “a vizinhança” e “a imigração”. Esses
fatos são produzidos exclusivamente por fatores espirituais e se verificam
dentro de uma forma espacial, sendo que o que realmente tem importância social
não é o espaço, mas o encadeamento e a conexão das partes do espaço produzidas
por fatores espirituais. A relação entre dois elementos, que se dá a partir de
um movimento recíproco, tem lugar entre eles no sentido espacial. A ação
recíproca transforma o espaço, antes vazio, em cheio. A socialização produz nas
distintas classes de ação recíproca entre os indivíduos outras possibilidades
de convivência. Porém, muitas delas se realizam de tal modo que a forma
espacial em que têm lugar justifica sua atuação para fins de conhecimento.
Assim, para tratar das formas de socialização é preciso dar importância às
condições espaciais que permitem suas características e desenvolvimentos.
Em a Digressão sobre a Sociologia dos sentidos, Simmel (1927) afirma que a percepção do
outro com os órgãos sensoriais possui uma importância sociológica fundamental.
O conjunto de perguntas que fazemos a nós mesmos sobre os outros determina uma
divisão do trabalho realizado entre os sentidos. A impressão sensorial serve
como um meio de conhecimento do outro. Isso porque a impressão sensorial além
de possuir um valor sentimental, permite a relação com o outro a partir do conhecimento
instintivo e voluntário. Para fundamentar suas conclusões, o autor faz uso de exemplos
históricos, sendo que, as transformações históricas podem ser entendidas como
os conteúdos e os usos dos sentidos,
as formas.
Ao longo
do ensaio, Simmel aponta várias características dos “órgãos sensoriais”: a voz,
os olhos, o rosto, o ouvido, o olfato e o tato. Segundo o autor, a voz serve
para conhecer os sentimentos atuais de um indivíduo e suas maneiras de ser,
pois pode produzir um efeito atrativo ou repulsivo. Os olhos possuem uma função
sociológica particular, subjetiva e de ação recíproca, pois revelam “a alma”. Nos
indivíduos que se olham mutuamente, o desvio do olhar destrói a relação, pois
ao baixarmos os olhos privamos do outro a possibilidade de nos conhecer. Além
disso, os olhos mantêm uma dependência do rosto, que é o lugar geométrico de todos
os conhecimentos, o símbolo de tudo o que o indivíduo apresenta como pressuposto
de sua vida. Como símbolo da sucessão da vida, o rosto apresenta o passado do
indivíduo em forma de marcas físicas: a história de vida e as qualidades
básicas relativas à natureza. É o primeiro objeto do “olhar cara a cara”, pois
oferece à mirada o símbolo mais perfeito da interioridade permanente.
Sobre a
relação do ouvir e o olhar, o autor afirma que ouvido é um órgão egoísta, pois não
fornece nada. Diferente do olho, que toma é dá ao mesmo tempo, o ouvido só pode
tomar e dar quando somado à boca e à linguagem. Além disso, existe uma
diferença entre o cego e o surdo no que se refere ao estado de ânimo
sociológico. Para o cego, o outro existe na sucessão temporal de suas
expressões. O cego não consegue perceber a simultaneidade inquieta de todos os
passados que se mostram no rosto. Recordamos melhor o que ouvimos do que aquilo
que vemos. Quem vê sem ouvir vive mais confuso, desconcertado e intranquilo que
aquele que ouve sem ver. É o que acontece com o surdo.
Sobre o olfato,
o autor afirma que este possui um sentido dissociador. É possível qualificar o odor
como desagregador e antissocial, não só porque provoca mais repulsões que
atrações, mas porque a reunião de um grupo grande de indivíduos jamais lhe
fornece um tipo de atração. É um modo de conhecimento que em relação aos outros
órgãos sensoriais é difícil descrever com palavras, diferentemente do ouvido e
dos olhos, pois não consegue projetar-se no plano da abstração. Por outro lado,
Simmel analisa o papel sociológico do perfume artificial e afirma que o mesmo
recobre a atmosfera pessoal e a substitui por uma atmosfera objetiva. Entretanto,
ao mesmo tempo chama a atenção sobre ela. Do perfume que cria essa atmosfera
fictícia, se supõe que será agradável a todas as demais e que constituirá um
valor social. Isso se refere a uma “teleologia individual-egoísta e social” e ao
fenômeno da estilização da personalidade em algo geral.
Na
análise do tato, Simmel discute sobre a aproximação espacial, buscando exemplos
em diferentes períodos da vida humana. Apresenta uma análise etnológica com
exemplos de costumes de diversos povos, vendo o incesto como um exemplo da dualidade
aproximação/distanciamento. Nesse caso, a convivência na mesma casa
contribuiria para a “atrofia da excitação sexual”. O autor cita também algumas
mudanças que ocorreram com a modernidade, questões desenvolvidas em outros ensaios,
que serão tratados a seguir. Simmel vê no homem moderno uma tendência à
individualização, o que contribui para uma maior personalidade e liberdade, o crescimento
da sensibilidade para com as impressões visuais e o distanciamento do
indivíduo, a reserva.
Em a Digressão sobre o estrangeiro, Simmel
(1927) afirma que viajar significa a liberação de qualquer ponto definido no
espaço. Ao contrário, a oposição de viajar é a fixação em um ponto qualquer.
Para o autor, as relações espaciais são a condição e o símbolo das relações
humanas. O tipo social do estrangeiro significa a unificação dessas duas
características, representando a unificação da proximidade e da distância,
sendo “uma forma específica de interação”. O estrangeiro é um elemento do
próprio grupo social, mas que, se por um lado, é imanente e tem uma posição de
membro, por outro, está de certo modo fora do grupo, se confrontando com ele.
Na
história da economia o estrangeiro é sempre tido como um comerciante, o
intermediário das relações de trocas mercantis, já que suas características
possibilitam melhor a condição da troca, justamente por ser uma “peça extra”
nessas relações. Os judeus da Europa são citados pelo autor como exemplos
históricos clássicos desse tipo social, principalmente ao se considerar a questão
da posse de terra, já que os mesmos não são proprietários. Simmel cita como
exemplo o imposto comum fixado e cobrado aos judeus, na Idade Média, em
Frankfurt e outros lugares. Nessa época, a fixação da cobrança estava baseada
no fato de que o judeu tinha sua posição social como “judeu” e não como um
indivíduo possuidor de certos conteúdos objetivos.
O
estrangeiro possui como característica a objetividade, que também pode ser
definida como liberdade, pois o indivíduo objetivo não está amarrado a nenhum
compromisso que poderia prejudicar sua percepção, entendimento e avaliação do
que é dado. Além disso, o estrangeiro examina as condições com menos preconceito,
seus critérios são mais gerais e objetivamente ideais. Ele não está preso à
ação e ao hábito, pela piedade ou algo precedente. Para o autor, no caso de uma
pessoa de um lugar ou etnia diferente, estes elementos que a diferenciam não
têm nada de individual, sendo apenas a condição de origem, que é ou que poderia
ser comum a muitos estrangeiros. Por isso, os estrangeiros não são realmente
concebidos como indivíduos, mas como “estranhos de um tipo particular”, pois o
elemento de distância não é menos geral que o elemento de proximidade.
A “pequena” Sociologia
Em sua obra Questões fundamentais da Sociologia,
publicada em 1917 e conhecida como a “pequena” Sociologia, Simmel (2006) aponta
diretrizes para a legitimidade e demarcação da Sociologia como ciência. Para o
autor, a Sociologia é uma entre as disciplinas voltadas para a sociedade e que
tratam sobre temas humanos, mas que possui suas especificidades e necessita a
demarcação de seu campo de estudo. A Sociologia é um constructo intelectual baseado na relação sujeito-objeto – processo
pelo qual isolamos um fenômeno e o reduzirmos a elementos mais simples para
poder entendê-lo. Assim sendo, segundo o autor, o que realmente existe são constructos
complexos, que constituem realidades últimas e que podem ser consideradas
sínteses, pois existem como unidade
somente na nossa consciência.
Ao longo da obra, o autor
comenta sobre as diferentes distâncias em que o espírito humano se coloca
frente aos fenômenos para poder entendê-los, fazendo uma analogia com a observação
da imagem de uma pintura, que necessita certo distanciamento. Ao tratar da
sociedade, Simmel (2006, p. 14-25) comenta sobre as diferentes relações
praticadas pelos indivíduos reciprocamente. A sociedade é um “conceito
abstrato”, é algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo, um “acontecer”.
Portanto, o autor define a sociedade como a “interação psíquica entre indivíduos”
e a Sociologia, o estudo das formas de sociação.
Por isso, a descrição das formas dessas ações recíprocas constituiria a tarefa
da ciência social no sentido próprio. Ao tratar do modo de observação humano para
mostrar a importância da abstração e o uso do conceito de forma nessa investigação, o autor utiliza exemplos que vão desde as
ciências naturais até as ciências humanas, a filosofia, a arte e a religião.
Ao esboçar um método
sociológico, Simmel (2006, p. 30-35) afirma que o resultado da observação deve
passar pelo caminho que leva de uma unidade
indiferenciada, passando por uma multiplicidade
diferenciada, para chegar até uma unidade
diferenciada. Mesmo não citando Auguste Comte, Simmel refere-se às Leis dos Três Estados, pelo qual o
conhecimento científico percorre: teológico, metafísico e positivo (COMTE,
1978). Para tornar mais claro seus apontamentos, o autor compara a análise das
formas sociais com a abstração geométrica, utilizada na análise da forma
espacial dos corpos. Outra analogia é com a gramática, que isola as formas
puras da linguagem dos conteúdos nos quais elas vivem. É desse modo que a
análise sociológica pautada em forma
e conteúdo transforma os fatos. Tida
como qualquer outra ciência exata, a Sociologia se dividiria em dois âmbitos filosóficos: a teoria do conhecimento das
ciências sociais e a metafísica da disciplina.
No segundo capítulo dessa
obra, Simmel (2006, p. 39-58) analisa as reações do indivíduo frente à
coletividade e ao pertencimento grupal, bem como as direções tomadas pelo grupo
em relação ao indivíduo. O autor afirma que o indivíduo reage à pressão que
sofre pela “massa” (grupo social), manifestada por sentimentos, impulsos e
pensamentos contraditórios. Enquanto o indivíduo sofre essa pressão, a “massa”
está convencida de suas orientações. Contudo, o indivíduo ainda goza de certa
liberdade enquanto as ações da “massa” seriam determinadas por uma lei natural.
O autor fornece exemplos de como se dão essas relações. Mesmo não tratando
especificamente da identidade, Simmel discute sobre vários elementos envolvidos
nessa noção conceitual, como o significado da semelhança e da diferença na vida
social, percebendo como as características individuais são reduzidas frente à “massa”
e como a individualidade é mantida a partir de sentimentos instintivos, fatores
que estariam relacionados com o nivelamento social.
Segundo Simmel (2006, p.
60-61), a interação entre os indivíduos surge a partir de determinados impulsos
e da busca de certas finalidades, que fazem com que os mesmos mantenham uma
relação de convívio. A sociação é interação
entre os indivíduos, é a forma na qual os mesmos, em razão se seus interesses, desenvolvem-se
conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se
realizam. Tais interesses formam a base da sociedade humana. A matéria de sociação, o conteúdo, é “... tudo o que
existe nos indivíduos e nos lugares concretos de toda a realidade histórica
como impulso, interesse, finalidade, tendência, condicionamento psíquico e
movimento nos indivíduos – tudo o que está presente nele de modo a engendrar ou
mediatizar os efeitos sobre os outros, ou a receber esses efeitos dos outros”
(SIMMEL, 2006, p. 60). Simmel trata sobre a autonomização dos conteúdos, ou
seja, a autonomia dos objetos criados pelo homem, sejam estes realidades
concretas ou abstratas. Não só os conteúdos, mas também as formas sociais
adquirem vida própria. Simmel define esse fenômeno como sociabilidade, que é a sociação
em sua forma mais pura, ou seja, aquela que acontece entre iguais.
A cultura filosófica como aventura
Originalmente
publicada em 1911, a obra Philosophische
Kultur (Cultura filosófica, ou Sobre
la aventura, na versão espanhola) é
composta por seis capítulos que tratam de temas variados: Para uma psicologia filosófica, Para
uma filosofia dos sexos, Ensaios de
estética, Sobre personalidades
artísticas, Sobre filosofia da
religião e Sobre filosofia da cultura.
Na introdução, Simmel (2002) mostra o que
confere unidade aos ensaios que constituem sua obra. Essa unidade está
relacionada à concepção de filosofia da qual o autor se utiliza para
interpretar a realidade. O que é comum nessa concepção não é propriamente o
objeto da reflexão, mas o processo a partir do qual se constitui seu
pensamento. Com esse conjunto de ensaios, o autor dialoga com um ramo especial
da filosofia, a metafísica. A metafísica simmeliana se apresenta como um
processo do pensamento, um conjunto de construções mentais baseada no movimento
do espírito humano, que se realiza socialmente oscilando entre os conteúdos
objetivos e subjetivos da vida. Nesse sentido, o conhecimento não pode ser
entendido desde um lugar de ruptura entre sujeito e objeto, mas como uma via de
trânsito entre eles. A cultura filosófica
é, então, o dualismo que marca a internalidade do sujeito e que, num
movimento contínuo, se expressa nas formas que constituem o mundo social. Ao
final do texto da introdução, o autor menciona uma fábula que serve como uma metáfora
sobre a necessidade do espírito humano de crescer, buscando sempre algo para
além do mundo físico.
No
ensaio O conceito e a tragédia da cultura,
Simmel (2002) trata da relação do ser humano com a realidade do mundo, o que dá
início ao processo entre sujeito e objeto, que é uma característica da
singularidade humana. Para o autor, a ideia de cultura se encontra entre esse
dualismo e seu surgimento se dá quando acontece a aproximação entre a alma
subjetiva e o produto espiritual objetivo. Isto porque a cultura é o movimento
de síntese desses dois elementos, sendo que nenhum deles a contém em separado.
A cultura só pode ser encontrada no aperfeiçoamento dos indivíduos, momento em
que ocorre a cultivação.
A
cultura é uma síntese, mas a síntese não é a única forma de unidade, uma vez que ela sempre
pressupõe a separação dos referidos elementos como etapa anterior. Fazem parte
desse processo a cultura objetiva e a cultura subjetiva. Cultura objetiva são
as instituições, os conhecimentos, as atitudes que os homens desenvolvem ao
longo da história, são as coisas em que a elaboração e o crescimento conduzem a
alma humana à sua consumação própria e que representam trechos do caminho que o
indivíduo particular ou a globalidade recorrem sem interrupção até uma
existência mais elevada. Cultura subjetiva é a apropriação de toda cultura
objetiva, anterior e exterior ao indivíduo, ela é a medida de desenvolvimento
que as os indivíduos alcançam.
A partir
da conclusão de uma obra cultural, esta não apenas passa a ter uma existência
objetiva e uma vida própria, como passa a conter nesta existência autônoma,
força e fraqueza, componentes e significação, sobre os quais o homem não tem
responsabilidade e pelos quais é frequentemente surpreendido. O homem cria algo
objetivo e autônomo, que torna o caminho para o desenvolvimento do sujeito de
si mesmo para si mesmo, o que constitui o conceito de cultura. Esse elemento
integrante e condicionante da cultura é predeterminado a um desenvolvimento
próprio, que consome continuamente forças dos sujeitos. Contudo, o
desenvolvimento do sujeito não consegue acompanhar o desenvolvimento do objeto
e é daí que decorre a tragédia da cultura.
Outro
ensaio que tematiza a criação humana é A
aventura. Nesse texto, Simmel
(2002) afirma que toda a criação e experiência humana têm uma dupla
significação: gira em torno do seu próprio centro, refletindo amplitude,
profundidade, prazer e dor ao nível da experiência imediata; faz parte do
decorrer da vida, não apenas uma totalidade circunscrita, mas também componente
de um organismo completo. Esses dois sentidos configuram cada conteúdo da vida.
Por sua vez, a aventura extrapola o contexto da vida, como que se corresse à
margem dela. A aventura é como se fosse um corpo estranho à vida, mas que, no
entanto, está ligada ao seu centro. Ao se localizar fora do contexto da vida,
volta a se inserir nela, pois, o externo pode ser entendido como uma forma do
interno.
A aventura
pode ser comparada à lembrança dos sonhos na memória, que são esquecidos em
situação de se situarem fora do contexto do sentido da totalidade da vida. Quanto
mais uma aventura corresponder ao seu conceito, permanecerá como uma lembrança
na memória, assim como um sonho marcante. A aventura tem começo e fim, o que
constitui sua centralização num sentido próprio e seu desligamento dos
entrelaçamentos e encadeamentos dos seus conteúdos. A aventura é independente
do antes e do depois, seus limites se determinam sem considerá-los. O começo e
o fim da aventura são determinados como uma ilha na vida e não como um pedaço
de continente, determinado pelos lados. A aventura não termina porque alguma
outra coisa iniciou, pois sua forma temporal, seu fim radical, constitui a
figura precisa de seu sentido interior. Simmel cita vários tipos sociais propícios
à aventura. Para o autor, a semelhança entre o jogador e o aventureiro reside
em que o jogador se entrega ao acaso, contando que este pode lhe ser favorável.
O acaso condiciona o contexto do jogo, fornecendo-lhe sentido. Da mesma
maneira, fornece sentido também à vida do jogador, transformando-se numa
necessidade e num elemento de significação.
Do mesmo
modo como a aventura parece basear-se numa diferenciação dentro da vida, a vida
como um todo pode ser sentida como uma aventura. O aventureiro confia sua
própria força, em sua própria sorte e na união não diferenciada de ambas. Por isso, o aventureiro é o homem do
presente. Ele não é definido pelo passado, o que determina sua oposição à
velhice. Por outro lado, não há para ele o futuro. Uma prova extrema e bem
característica da temporalidade da aventura citada por Simmel encontra-se nas
memórias do escritor italiano Casanova, em suas histórias erótico-aventureiras
(CASANOVA, 1946). Desse modo, a relação amorosa contém em si a junção dos
elementos que também unifica a forma do aventureiro: a força conquistadora e a
concessão não constrangida, o ganho advindo da própria capacidade e a
dependência da sorte, que é concedida por uma instância incalculável alheia à
força e capacidade individual; outro elemento é a fugacidade da relação
amorosa.
Elementos da vida moderna
Os
escritos de Simmel são marcados pela presença constante de dualidades. Em
alguns de seus ensaios, o autor utiliza a complementaridade e a justaposição de
opostos, como em Da psicologia da moda:
um estudo sociológico, no qual Simmel (2005) inicia o texto tratando sobre o que chama de “tendências
contraditórias” do ser humano. Nas configurações sociais dessas contradições
tem-se frequentemente um dos polos como portador da tendência psicológica para
a imitação, uma das direções fundamentais do ser. A imitação proporciona o
estímulo de uma efetiva prova de força, pois não exige esforço criativo e
pessoal. Proporciona a tranquilidade de não estarmos sozinhos. Na imitação é o
grupo que conduz o indivíduo, na medida em que transmite a forma do seu
comportamento e liberta o indivíduo da tortura e da responsabilidade da
escolha. É apenas um fator constitutivo do nosso ser, uma das direções
fundamentais do nosso ser que satisfaz a unidade, a igualdade e o amálgama do
indivíduo na generalidade, ou seja, permite a fusão do indivíduo com a
coletividade.
De
acordo com Simmel, a moda é imitação de um modelo dado. Ela satisfaz dois
aspectos das necessidades humanas. Uma delas é a necessidade de apoio social
porque é imitação, conduzindo o indivíduo ao caminho que os demais seguem.
Nesse caso, há uma tendência para a igualdade social. A outra é a necessidade
da diferença, de distinguir-se, contrastar e destacar-se, pois a autoestima
exige distinção e o sentimento de ser especial.
Há, portanto, uma tendência para a distinção individual. Assim, a moda
significa a inclusão num grupo de iguais, a unidade de um círculo caracterizado
por ela e por isso o fechamento deste grupo frente aos que se situam abaixo dele.
Simmel afirma que desde os “povos primitivos”, a moda marca a coesão interna do
grupo a partir da diferenciação que vem de fora do próprio grupo. Na sociedade
moderna, a moda dos estratos superiores se diferencia da dos estratos
inferiores, porque ela é “um produto de separação de classes”.
A produção intelectual de Georg
Simmel afirma a importância do estudo dos detalhes da vida cotidiana do século
XIX, pois esses fenômenos culturais expressam as imagens que a sociedade produz
de si mesma. As análises do autor sobre determinados fenômenos do capitalismo
moderno permitem relacionar diversas esferas da vida humana, sejam elas
sociais, econômicas, políticas, culturais ou ideológicas. É dentro dessa
perspectiva que se insere um de seus livros mais importantes: a Filosofia do
dinheiro (SIMMEL, 1977). Publicada
originalmente em 1900, essa obra compila e sintetiza análises apresentadas
anteriormente em vários ensaios. Nela, o autor faz uma constante
referência ao mundo visual da sociedade moderna, abordando o significado
documental de fenômenos como as exposições de arte, a moda, as grandes cidades
e o dinheiro.
No ensaio A metrópole e a vida mental, Simmel
(1979) apresenta algumas das ideias desenvolvidas na Filosofia do dinheiro, mostrando como o indivíduo se adequou à
sociedade no meio urbano, ao receber certas influências do ambiente moderno que
intensificam seus estímulos. Na visão do autor, a personalidade se ajustou a
essas forças externas, já que o tipo metropolitano de individualidade consiste
na intensificação dos estímulos resultantes da alteração entre estímulos
exteriores e interiores. As metrópoles são as sedes da divisão do trabalho, que
exigem dos indivíduos um aperfeiçoamento cada vez maior. Surge, então, a
especialização condicionada pela competitividade. Tudo isso promove um
psiquismo diferenciado no indivíduo metropolitano, que é chamado às novas
relações sociais nas quais a pontualidade, a exatidão e a intelectualidade
estão intrinsecamente vinculadas na conformação de sua personalidade.
Diante dessa nova sociedade
que pressiona o indivíduo, sua personalidade busca se acomodar ou se ajustar em
dois tipos de respostas ao momento do encontro com outras personalidades: a atitude blasé e a reserva. A atitude blasé resulta dos estímulos
contrastantes que são impostos aos nervos, estes encontram na recusa ao reagir
aos estímulos à última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e a forma da
vida metropolitana. Submetida a esta existência, a personalidade busca
autopreservação pela aversão, antipatia e estranheza. O que autor chama de reserva, que é o bloqueio de contato
mais próximo entre os indivíduos do meio urbano. A atitude blasé e a reserva
não são resultantes de escolhas conscientes dos indivíduos, elas são adquiridas
e apreendidas em relações sociais recíprocas, como uma base sociopsicológica.
Os indivíduos no meio
urbano constroem seus próprios mundos por se tornarem cada vez mais concentrados
em si mesmos, fechados contra círculos vizinhos. Contudo, o homem metropolitano
é livre em comparação aos preconceitos que atrofiam o homem da cidade pequena.
Uma das características da cidade grande, então, é a extensão funcional, para
além de suas fronteiras físicas. Além disso, existe a transição para a
individualização de traços mentais e psíquicos que a cidade ocasiona em
proporção ao seu tamanho nos indivíduos. Outra questão importante levantada
pelo autor é a de que a metrópole é a sede da economia monetária. Nesse
sentido, existe uma ordenação econômica, na qual o dinheiro reduz toda a
qualidade e individualidade.
Outro ensaio relevante é O dinheiro na cultura moderna, no qual Simmel
(2005) afirma que com o desenvolvimento da modernidade, os laços que o homem
mantinha com sua comunidade e com a propriedade feudal foram destruídos. Isso
porque, a personalidade do homem medieval estava incorporada nos círculos de
interesses práticos ou sociais. Essa unidade
foi destruída na Época Moderna, que conseguiu separar e autonomizar o sujeito e
o objeto. Portanto, a relação entre personalidades e relações objetivas
desfaz-se com a economia do dinheiro, que impõe uma distância entre a pessoa e
a posse, tornando a relação entre ambas mediada por uma instância totalmente
objetiva. No que diz respeito à separação entre a posse e o possuidor, o
dinheiro conferiu, por um lado, um caráter impessoal anteriormente desconhecido
a toda atividade econômica, e por outro, aumentou a autonomia e a independência
do ser humano.
Simmel vê no dinheiro algo
livre e abstrato que na vida moderna mudou totalmente o modo dos homens se
relacionarem entre si e com o mundo. Para o autor, o dinheiro influenciou
enormemente a personalidade do ser humano, reduzindo o caráter racional das
coisas pelo calculador e os valores qualitativos pelos quantitativos. Operações
matemáticas contínuas como taxar, estimar, calcular e reduzir valores qualitativos
a valores de diferentes origens se desenvolveu no comportamento social. Sendo
assim, não se percebe que o dinheiro é apenas um meio para obter outros bens,
já que o dinheiro permite ao homem a chance de satisfazer seus desejos.
O dinheiro originou um sentimento
de liberdade que desencadeou a ausência de conteúdos da vida cotidiana e o
afrouxamento da substância vital. Ao fazer surgir uma dimensão radicalmente
nova entre liberdade e compromisso, ele permitiu ampliar um sentimento de
independência abrindo espaço para uma maior individualidade. Simmel ressalta a
definição de que o dinheiro é o deus da época moderna. A ideia de Deus teria
para o autor sua significação no fato de que todas as contradições e
multiplicidades do mundo ganhariam unidade por referência a uma potência
absoluta. O dinheiro apresenta afinidade com essa ideia.
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