Luis Afonso Salturi
Artigo publicado originalmente em IF-Sophia: Revista eletrônica de investigações filosóficas, científicas e tecnológica, v. I, p. 116-135, 2015.
As correntes teóricas e a problemática da disciplina
A Sociologia da Arte é uma área específica do conhecimento sociológico que carece de abordagens metodológicas aprimoradas. Frente às diferentes perspectivas teóricas que tratam do fenômeno artístico, enfatizando as influências sociais na produção, distribuição e consumo da obra de arte, propõe-se traçar um caminho de leitura e interpretação de autores que, em algum período de sua produção intelectual, trataram a arte como objeto sociológico[1]. Pretende-se, portanto, investigar quais os métodos utilizados pela Sociologia da Arte e quais elementos os autores dessa área vêm utilizando em suas pesquisas para concretizar suas análises.
No ensaio de abertura de uma coletânea sobre Sociologia da Arte, publicada pela UNESCO em 1968[2], o sociólogo alemão Alphons Silbermann afirma que esta área é uma disciplina em “plena expansão”. Segundo SILBERMANN (1971), a Sociologia da Arte nasce quando se trata como objeto de estudo as diferentes formas de arte: literatura, música, teatro e pintura. A criação de centros universitários, a inserção dessa disciplina em cursos superiores, sua presença em congressos e o crescimento de publicações do gênero são fatores que contribuem para tal evolução. Contudo, o desenvolvimento dessa disciplina coloca certos problemas que se referem aos seus fundamentos como ramo autônomo do conhecimento sociológico. Para tratar desses problemas, é preciso considerar se a Sociologia da Arte deve ser tratada como disciplina independente ou como auxiliar. Deve-se também determinar onde e como a mesma pode ser incorporada no conjunto da Sociologia, para que não se encontre numa situação marginal. Frente a essas questões, o autor oferece uma visão sistemática e sucinta das direções que seguem as diferentes escolas do pensamento dessa área e trabalham em prol de seu desenvolvimento teórico, lançando explicações práticas e metodológicas.
O autor se refere às generalizações da Sociologia da Arte como ramo da Sociologia do Espírito, do Conhecimento e da Cultura, bem como os resultados dessa classificação. No primeiro caso, as diferentes formas de arte são tratadas como atividades do espírito individual ou social, sem distinção alguma, o que faz com que não somente prive cada uma do seu caráter particular, mas que as assimile às atividades de origem diversa. Como é o caso do sociólogo francês Georges Gurvitch que trata a Sociologia da Música, da Linguagem, da Literatura, da Arte, da Religião, do Direito, dentre outras, como pertencentes à “Sociologia das Obras da Civilização” (GURVITCH, 1977). No segundo caso, põe-se em evidência o tipo de pensamento humano correspondente a tal ou qual época e estabelece-se a relação entre pontos de vista de filósofos e intelectuais, por um lado, e correntes sociais, por outro. A Sociologia do Espírito, assim com a Sociologia do Conhecimento, engendra um modo de pensamento a priori que não pode ser avaliado por uma Sociologia da Arte de orientação empírica.
É a generalização da Sociologia da Arte como ramo da Sociologia da Cultura que permite uma classificação satisfatória, isto porque o moderno conceito de cultura engloba não só as manifestações artísticas, mas também os modelos de conduta e tipos de formação e acepção que se adquirem e se transmitem socialmente. Deste modo, o autor faz referência aos trabalhos de Alfred Von Martin, Frederick Antal, Curt Sachs e Arnold Hauser como importantes aplicações da Sociologia da Cultura à arte, principalmente porque teriam ultrapassado os limites de uma História Social, progredindo para uma interpretação sociológica.
Uma das contribuições lançadas por Alphons Silbermann é sua distinção entre História Social da Arte e a Sociologia da Arte. Segundo SILBERMANN (1971, p. 19-27), a História Social trata de fatos cujas vinculações e correlações com o estado social não obedecem a leis repetitivas, porque resultam da natureza original de grandes personalidades: as forças que põe em jogo e sua progressão não são nem constantes nem regulares. Enquanto que a Sociologia da Arte se interessa por fatos históricos, que são conduzidos por mecanismos de interação ligados ao progresso da sociedade e que obedecem, em seu desenvolvimento, a forças que a Sociologia deve analisar e descrever. Assim, autores como Wilhem Dilthey, Hans Freyer, Arnold Gehten, Marcel Belvianes e Pierre Francastel são tratados por Silbermann como “sociólogos da história”, na medida em que interpretam dados sociais da História da Arte.
O autor também faz uma distinção entre estética sociológica e reflexão estética. Enquanto a primeira, ao tratar sobre temas ligados às artes, se preocupa com o elemento coletivo, a segunda se interessa exclusivamente pelo indivíduo. Charles Lalo, Raymon Bayer e Thomas Munro são representantes da primeira tendência e Vischer, Schelling, Heinrich Wölfflin e Benedetto Croce, da segunda. Os aspectos mais significativos dos estudos de Georg Simmel, Pitirim Sorokin, Theodor Adorno e Max Weber são salientados por Silbermann, principalmente a contribuição desses autores para o desenvolvimento da Sociologia da Música, área na qual Silbermann publicou vários estudos. A partir desses autores a Sociologia da Arte tendeu cada vez mais a encarar os fenômenos artísticos tendo como suporte a análise das relações sociais. De certa forma, isso conduziu outros estudos, principalmente de inspiração filosófica, como os de Georg Lukács, Lucien Goldmann, Walter Benjamin, Etienne Souriau, Arnold Gehlen e Jean Cassou.
Sobre os sociólogos da arte de tendência empirista, SILBERMANN (1971, p. 28-31) afirma que os mesmos nunca tiveram dificuldade em reconhecer que os consumidores de arte, em todos os tempos, fizeram parte da vida artística. Contudo, no cenário da sociedade artística, a análise baseada na relação entre grupo produtor e grupo consumidor não pode ser considerada somente em termos de causa e efeito, mas também em termos de interdependência, de correlação e de interação. Deve-se considerar o espectador, o ouvinte ou o leitor em suas estruturas sociais, tratando de suas funções e de seu comportamento para obter a realização daquilo pelo que se interessa a Sociologia da Arte: a vivência artística. Os campos de ação das artes devem ser considerados à luz das relações do indivíduo ou do grupo e é a vivência artística que permite estabelecer estas relações. A vivência artística pode criar campos de ação cultural, somente ela pode ser ativa, social. Somente ela pode estar como fato social, na origem e no centro da Sociologia, delimitado e observado com uma precisão tão considerável a respeito de três dados sociais fundamentais: natureza, mutabilidade e dependência.
Por fim, a Sociologia da Arte tem como principal objetivo estudar processos artísticos totais, enunciando a interação e a interdependência do artista, da obra de arte e do público, a partir do ponto de vista de sua significação com as formas artísticas. Essa disciplina tem como objetivo estudar o artista como elemento do processo total, descrevendo-o e analisando sua situação e suas relações sociais, quer se trate de grupos de artistas criadores ou executantes. Portanto, o sociólogo da arte examina o papel de fatores tais como a origem social de certas categorias de artistas, recompilando e analisando informações sobre a origem étnica do artista, sua condição econômica, seu nível educacional, assim como dados sobre seu estilo de vida, sua resistência, seus hábitos de trabalho, seus contatos sociais e suas atitudes possíveis e reais. Deste modo, para construir a imagem completa, a Sociologia da Arte se dedica ao conhecimento sociológico da obra de arte e ao fazê-lo, não intenta analisar a obra em si mesma, mas concentra sua atenção na ação sócioartística.
A criação artística como objeto de um estudo sociológico
Entre os autores clássicos do pensamento sociológico que se interessaram pela arte como objeto de investigação, Georg Simmel obteve grande destaque. Embora o fenômeno artístico seja um tema constante em seus ensaios, estes se aproximam mais de uma abordagem estética do que sociológica[3], principalmente porque o autor concebe a obra de arte como um construto humano surgido a partir da relação de estranheza entre o “processo da vida” e a “criação da alma”. Apesar disso, Simmel nunca deixou de salientar a relação das transformações sociais e históricas com o fenômeno artístico. Um dos pontos decisivos para entender suas análises sobre a arte é a noção de cultura que norteia vários de seus escritos.
No ensaio chamado O conceito e a tragédia da cultura, SIMMEL (2005) trata da relação do ser humano com a realidade do mundo, o que dá início ao processo entre sujeito e objeto. Segundo o autor, a cultura surge a partir da aproximação entre a “alma subjetiva” e o “produto espiritual objetivo”, resultando do movimento de síntese desses dois elementos, sendo que nenhum deles a contém por si só. A partir da conclusão de uma obra cultural, esta não apenas passa a ter uma existência objetiva e uma vida própria, como passa a ter uma existência autônoma. O caráter fetichista que Karl Marx confere aos objetos econômicos à época da produção das mercadorias constitui, para Simmel, apenas um caso especial e modificado do destino dos conteúdos materiais[4]. Para Simmel, o ser humano cria algo objetivo e autônomo, que torna o caminho para o desenvolvimento do sujeito de si mesmo para si mesmo, o que constitui o conceito de cultura. Esse elemento integrante e condicionante da cultura é predeterminado a um desenvolvimento próprio, que consome continuamente forças dos sujeitos. Contudo, o desenvolvimento do sujeito não consegue acompanhar o desenvolvimento do objeto e é nesse estágio, então, que ocorre a “tragédia da cultura”.
Influenciado pelo pensamento de Simmel, Walter Benjamin trata sobre a autonomia da obra de arte, analisando as causas e consequências da destruição da aura, que consiste em tudo aquilo que é eliminado a partir do processo de reprodução, já que as obras de arte são objetos individualizados e únicos. Segundo BENJAMIN (1978), o que a reprodução produz é a alienação do objeto reproduzido do domínio da tradição. Dessa forma, a unicidade da obra da arte tem a ver com o ritual e com a tradição, já que as mais antigas obras de arte serviam a rituais mágicos e religiosos. Com a reprodução em série, a contemplação ligada à aura da obra de arte, ou seja, o valor de culto cedeu lugar ao valor de exposição e, com a exacerbação deste, aumentam as ocasiões para que as obras de arte sejam expostas.
O debate sobre a relação entre arte e sociedade leva a duas atitudes filosóficas opostas. A primeira trata da defesa da “arte pela arte”, e consiste na afirmação de que a arte só é arte se for pura, não estando ligada às circunstâncias históricas, econômicas, políticas e sociais. A segunda defende uma “arte engajada”, na qual o artista deve tomar uma posição crítica, lutando por transformar a sociedade e conscientizar o público. Essas duas atitudes são problemáticas. A primeira, porque desemboca no formalismo, em que a perfeição da forma da obra de arte é que conta e não o seu conteúdo. A segunda reserva-se ao conteudismo, no qual a mensagem que a obra de arte deve passar é a preocupação central, mesmo se esta não tiver uma força inovadora. Além disso, ao buscar compreender o papel do artista na sociedade, essas duas posições levantam uma questão filosófica a ser discutida: o artista como criador.
Entre as disciplinas que tratam da arte, a Estética é a que mais se preocupa com o processo intuitivo do artista na produção da obra de arte. Tendo como base a reflexão estética, o sociólogo mexicano Lucio Mendieta y Núñez ao considerar a arte sob o ponto de vista sociológico, define-a como um “... fenômeno social de intuição criadora que se concretiza na obra do artista, com o objetivo de suscitar no homem e na sociedade emoções estéticas, sentimentos de admiração e sublimações coletivas” (MENDIETA y NÚÑEZ, 1967, p. 54). Ao comentar sobre a conclusão a que chega o filósofo Benedetto Croce na sua obra Breviário de estética (CROCE, 2001), Mendieta y Núñez chama a atenção para algo misterioso e indescritível que é a inspiração ou a intuição do artista. Segundo o autor, a intuição é um fenômeno psicológico encontrado em diversos atos da vida humana. Assim, para distinguir a intuição artística de qualquer outra, o autor afirma que esta é intuição criadora.
O autor trata a arte como uma forma de comunicação humana, um produto social que assinala emoções estéticas ao se manifestar na vida interior dos indivíduos. Para o mesmo, “o elemento social da arte é derivado das interações humanas que, no tempo, criam uma série de conceitos, de ideias, de sentimentos coletivos nos quais o artista necessariamente se inspira, pois se dele se afasta, sua obra torna-se vazia de interesse e não pode despertar qualquer emoção.” (MENDIETA y NÚÑEZ, 1967, p. 70). Desse modo, argumenta que a Sociologia deve complementar-se com as teorias que buscam explicar a emoção estética.
Mendieta y Núñez apresenta uma proposta metodológica de Sociologia da Arte em que considera outras disciplinas que tratam sobre a arte como pontos de referência da referida disciplina, cujo objeto de estudo seria a arte em sua realidade social. Para o autor, o conteúdo da Sociologia da Arte compreenderia a arte como fenômeno social, sua relação com outros fatores sociais, as relações inter-humanas que derivam dela, a influência do meio físico e social, a influência social da arte e a síntese: a arte como fator de convivência humana. Outras questões importantes são apontadas pelo autor, como a classificação das artes em: artes musicais (música e canto); artes plásticas (arquitetura, escultura e pintura); artes literárias (poesia e prosa) e artes complexas (dança, drama, comédia, cinema e rádio).
A intuição criadora, conceito tão valioso para a proposta de estudo de Mendieta y Núñez, desemboca na relação indivíduo e sociedade, tema tratado também por outros autores, como o antropólogo argentino Néstor García Canclini. Num de seus estudos, CANCLINI (1979) comenta as contribuições de Sartre em Crítica da razão dialética (SARTRE, 2002), em que se dedicou a elaborar um sistema dialético de mediações entre o social e o individual, entre a produção coletiva e a de cada artista. Para Canclini, apesar da proposta de Sartre ser inovadora, ela reincide em “antigos vícios”, como o de tratar o indivíduo e a sociedade como unidades separadas e estanques, colocando o artista solitário e o contexto social em polos opostos. Desse modo, é o predomínio da consciência individual que orienta a obra de Sartre, levando-o a acreditar que não é a condição de classe que opera no indivíduo, mas é este que inventa a partir da tomada de consciência da sua situação objetiva.
Tendo isso em vista, o autor afirma que a Sociologia é responsável por desafiar a Teoria e a História da Arte a reconhecerem os condicionamentos decorrentes da produção, circulação e consumo de bens artísticos, contribuindo para que a análise não se paute somente na idealização do artista como gênio e na sacralização das obras. Assim, a partir de algumas pesquisas sociológicas como as de Raymond Moulin e de Pierre Bourdieu, o autor chega à conclusão de que “... o objeto de estudo da estética e da história da arte não pode ser a obra, mas o processo de circulação social em que os seus significantes se constituem e variam.” (CANCLINI, 1979, p. 12). Para o autor, a Sociologia da Arte, que deveria tornar possível tal conhecimento, ainda não existe como disciplina científica fundamentada teoricamente, tendo um número considerável de pesquisas particulares que a avalizem. Essa disciplina se constitui num “campo de problemas” delimitado por estudos de orientações divergentes.
Considerando essas questões, CANCLINI (1979, p. 13-14) apresenta um esquema no qual agrupa as principais teorias que tratam sobre o fenômeno artístico em quatro orientações distintas: a Sociologia da Arte como parte de uma Sociologia do Espírito ou Sociologia das Obras da Civilização, expressão de Georges Gurvitch e da qual também fazem parte Jean Duvignaud e os historiadores da Escola de Warburg, como Aby Warburg e Erwin Panofsky; a Sociologia Empirista ou Funcionalista, representada por Vytautas, Kavolis, Robert Escarpit e Alphons Silbermann; a Sociologia Estrutural, que estuda a correlação das estruturas artísticas com as sociais e não constitui uma tendência homogênea, reunindo autores como Lucien Goldmann, Pierre Francastel e Pierre Bourdieu; e a Sociologia Marxista, representada por Georg Lukács, Boris Arvatov, Antonio Gramsci, Galvano della Volpe, Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, entre outros.
De acordo com o autor, essa classificação não deve ser vista com rigidez, não só porque certos autores adotam contribuições das outras correntes teóricas, mas porque existe carência de um contexto teórico único. A reflexão teórica deve construir o objeto de estudo, mas é preciso pensá-la na prática, combinando o trabalho teórico com o empírico. Ao chamar a atenção para a não rigidez de sua classificação, Canclini tem em mente autores como Pierre Bourdieu, que não só foi influenciado por diferentes orientações teóricas, como conciliou teoria e prática em muitos dos estudos que realizou. É preciso salientar que, em seus estudos, Bourdieu desenvolveu uma nova maneira de tratar o fenômeno artístico, dialogando com os estudos clássicos e incorporando inovações.
Numa de suas conferências, Pierre Bourdieu afirma que “a Sociologia e a arte não fazem um bom par”. Isto porque “o universo da arte é um universo de crença, crença no dom, na unicidade do criador incriado, e a irrupção do sociólogo que quer compreender, explicar, tornar compreensível, causa escândalo” (BOURDIEU, 1983, p. 162-163). Assim, o autor questiona algumas ideias estabelecidas sobre a Sociologia da Arte e da Literatura. A primeira delas é de que a sociologia pode responder às questões relativas ao consumo cultural, mas não à produção. Já que não se pode compreender a produção naquilo que ela tem de mais específico, ou seja, enquanto produção de valor e de crença, a não ser que se considere, ao mesmo tempo, o espaço dos produtores e o espaço dos consumidores. A outra ideia estabelecida é a de que a Sociologia nivela e reduz a criação artística, colocando os grandes e os pequenos artistas no mesmo plano.
A criação artística é descrita por BOURDIEU (1983, p. 164-165) como o encontro entre um habitus socialmente constituído e certa posição também instituída, ou possível, na divisão do trabalho de produção cultural e na divisão do trabalho de dominação. Bourdieu concebe uma “Sociologia das Obras Culturais” como responsável por tomar como objeto o conjunto das relações - objetivas e efetuadas sob a forma de interações - do artista com outros artistas e, também, dele com o conjunto dos agentes engajados na produção da obra ou pelo menos do valor social da obra, como críticos, diretores de galerias e mecenas. Portanto, o autor toma como objeto o campo de produção cultural e a relação deste com o campo dos consumidores.
Os campos de produção cultural propõem um espaço de possíveis àqueles que neles estão envolvidos. Esse espaço de possíveis define o universo de problemas, de referências e de marcas intelectuais dos produtores culturais de determinada época, fazendo com que estejam situados uns em relação aos outros. Além de situados e datados, os produtores culturais são relativamente autônomos em relação aos determinantes do ambiente econômico e social. Assim, cada artista ou literato só existe e subsiste de acordo com as limitações do campo, criando seu próprio projeto criador em função da sua percepção das possibilidades disponíveis e inscritas em seu habitus[5], por certa trajetória e pela escolha ou recusa dos possíveis. Portanto, para compreender uma obra cultural é preciso compreender também o campo de produção e a posição do produtor nesse espaço.
Os métodos de interpretação documental
Nos seus primórdios, são escassas as pesquisas da Sociologia que utilizam materiais visuais ou fazem uso de um estilo literário. Uma das razões dessa exclusão se deve ao caminho que essa disciplina teve que seguir para poder afirmar seu estatuto científico. Segundo MARTÍNEZ (2006), para que a Sociologia se estabelecesse como ciência, os sociólogos se viram obrigados a abandonar os elementos visuais e literários de seus estudos e elaborarem métodos ligados ao conhecimento das Ciências Exatas, que ofereciam maiores possibilidades de expor os dados da sociedade. Portanto, foram deixados de lado todos os materiais, documentos e métodos que não apontassem para um conhecimento quantificável.
Essa exclusão de materiais visuais na Sociologia fez com que os métodos utilizados pelos sociólogos não se tornassem adequados para a análise e a utilização de imagens. O sociólogo que atualmente pretende utilizar imagens em suas investigações terá que enfrentar essa questão. Em seu artigo, MARTÍNEZ (2006) comenta sobre o método de interpretação documental do sociólogo Karl Mannheim como um modelo exemplar para fazer uso da imagem em Sociologia. A adequação do método de MANNHEIM (1986) à análise de imagens se deve ao fato de que o autor elaborou um método de interpretação dos fenômenos culturais baseando-se nos avanços metodológicos da História da Arte, campo em que os documentos visuais estão no centro de interesse do pesquisador. Utilizado no campo da Estética, o método imanente consiste em descrever os aspectos estéticos formais de uma obra de arte, analisando características estéticas e temáticas presentes nela. Não se trata do método genético de estudar a obra em si, mas analisar o contexto social e histórico em que ela foi feita. Mannheim encontra a síntese entre o método do imanente e o método genético no método que denomina interpretação documental.
Na História da Arte, Erwin Panofsky desenvolveu um método de interpretação documental em três níveis semelhante ao de Karl Mannheim. A definição de seu método iconológico aparece primeiramente na obra Estudos de iconologia, publicado originalmente em 1939 (PANOFSKY, 1995). Esse texto, que foi reeditado como introdução do livro Significado nas artes visuais (PANOFSKY, 2007), apresenta um método de abordagem da obra de arte a partir de três operações relacionadas. O autor define esses três níveis tendo como objeto de interpretação no tema ou significado da obra de arte. O primeiro deles é o tema primário ou natural, que se divide em fatual e expressional e que constitui o mundo dos motivos artísticos. A enumeração desses motivos resulta na descrição pré-iconográfica que, por sua vez, procede da interpretação feita a partir da familiaridade com objetos e eventos. O tema secundário ou convencional é apreendido pela percepção a partir da ligação de motivos artísticos com assuntos e conceitos, constituindo, então, o mundo das imagens, estórias e alegorias. Nesse nível, o ato de interpretação é conhecido como análise iconográfica, que necessita do conhecimento de fontes literárias. O significado intrínseco ou conteúdo é um princípio que sublima e explica os acontecimentos visíveis e sua significação inteligível e que determina até a forma sob a qual o acontecimento visível se manifesta. Constitui o mundo dos valores simbólicos, cuja análise é a interpretação iconológica e que necessita de uma intuição sintética, ou seja, da familiaridade com as tendências essenciais da mente humana, condicionada pela visão de mundo do intérprete.
Diante disso, vale ressaltar a importância do método de interpretação documental elaborado por Panofsky e, ainda, a grande contribuição que seus estudos trouxeram para o desenvolvimento das pesquisas em História da Arte nos primórdios do século XX. Além do mais, no âmbito da Sociologia contemporânea, suas obras influenciaram de forma decisiva as teorias desenvolvidas por Pierre Bourdieu, tanto em torno do conceito de habitus, que possui forte referência às análises realizadas por Panofsky em Arquitetura gótica e escolástica (PANOFSKY, 2001)[6], como em seus estudos sobre o fenômeno artístico, que forneceram uma nova direção às pesquisas em Sociologia da Arte. Pode-se citar dentre esses últimos, a obra Un art moyen, na qual BOURDIEU (1965) trata a fotografia como uma produção social e expressão de uma cultura específica, não como uma linguagem, diferentemente de como fazem os estudos de Semiótica e de Estética. O autor realiza uma análise dos processos de interiorização da objetividade que conduz a constituição de sistemas de disposições conscientes e perduráveis que são os costumes e os ethos de classe.
Outro estudo importante é Images d’Algérie (BOURDIEU, 2003), que inclui fotos da época em que o sociólogo realizou alguns estudos etnográficos na Argélia. Bourdieu viveu na Argélia durante o período da Guerra de Libertação, quando cumpria serviço militar. Depois, realizou atividades como docente no país, assumindo o cargo de professor assistente na Faculdade de Letras de Argel. Nesse momento de sua trajetória intelectual se concretizou sua passagem da Filosofia para as Ciências Sociais, especificamente a Etnologia. Essa obra começou a ser organizada pelo autor e só foi publicada após seu falecimento. Trata-se de um livro-catálogo planejado para uma exposição levada para o Instituto do Mundo Árabe e realizada entre 23 de janeiro a 2 de março de 2003, em Paris. Ela mostrou cerca de 120 das 2000 fotografias feitas por Bourdieu na Argélia, entre 1958 e 1961[7].
As fotos publicadas nessa obra serviram para sustentar suas análises acerca dos costumes e práticas dos argelinos, feitas em seus estudos sobre a etnologia Cabila (BOURDIEU, 2002). Dentre outras coisas, o autor fotografou homens e mulheres, idosos e crianças em suas atividades cotidianas, observando o comportamento desse povo e as relações de gênero e de gerações. É visível em seus registros a maneira de vestir dos argelinos e a posição corporal dos mesmos, estas que são tratadas pelo autor como hexis corporal, ou seja, como a incorporação das estruturas manifestada nas relações sociais, como características “moldadas no corpo”. Bourdieu mostra em suas fotografias a relação modernidade versus tradição na Argélia, constatando a presença do capitalismo e as formas de comércio local. Ele ainda registra a paisagem local e a interferência humana, indicando de que forma se dava a relação dos habitantes daquela região com o ambiente geográfico.
Em seus trabalhos, Bourdieu faz uso de imagens tanto como objeto de estudo, como técnica documental. Em A distinção, BOURDIEU (2007) apresenta uma análise do ethos e do gosto como a ética e a estética realizadas nos indivíduos. Sua densa pesquisa concilia teoria sociológica e pesquisa empírica fazendo uso de materiais visuais variados, desde fotografias amadoras até fotografias artísticas, pinturas e imagens publicitárias, além de vários tipos de gráficos. Outro estudo importante realizado por ele é O amor pela arte (BOURDIEU e DARBEL, 2003). Apesar de não utilizarem imagens reais nessa obra, os autores analisam o consumo estético e o imaginário visual, estudando o perfil do público e a frequência de visita aos museus, o acesso aos bens artísticos e a organização do gosto conforme a origem social, ele mostra como o gosto pode ser explicado como uma qualidade adquirida na vida social. Os autores chegam à conclusão de que para as camadas sociais médias o gosto é funcional, possuindo um valor útil que se apresenta nas práticas cotidianas diferentemente da representação erudita e estética, para as quais as camadas cultas, recebem um longo treinamento do olhar para adquirir a capacidade de ler as obras pelo ponto de vista formal. Essa abordagem, presente em toda a produção científica do autor acerca do objeto artístico, despertou várias polêmicas e trouxe uma nova perspectiva para os estudos de Sociologia da Arte.
Considerações finais
Em seu conjunto, os estudos clássicos da Sociologia da Arte não conseguiram sistematizar um corpo teórico para tratar sobre o fenômeno artístico, conservando abordagens específicas sem grandes avanços metodológicos. Porém, as análises realizadas por autores como Simmel e Benjamin já apontavam a complexidade e a autonomia da obra de arte enquanto objeto cultural. Em parte, pode-se considerar que os avanços metodológicos se deram a partir dos métodos propostos por Mannheim e Panofsky, que salientaram a importância dos aspectos formais da obra de arte para tratar do contexto social e histórico em que ela foi realizada.
Partindo dessas leituras, a obra de arte pode ser encarada tanto como uma forma de conhecimento sociológico sobre o artista, quanto um objeto em si mesma, pois esta possui um estilo próprio e faz referência aos aspectos históricos e sociais vivenciados pelo artista. É justamente nesse ponto que se situa a importância da vivência artística, que Silbermann elegeu como principal interesse da Sociologia da Arte. Contudo, a proposta metodológica e os conceitos desenvolvidos por Bourdieu contribuíram de forma significativa para o avanço e o estatuto científico da Sociologia da Arte. Tanto que os conceitos de habitus e campo, aliados às noções de estilo de vida e gosto, ganharam cada vez mais espaço em pesquisas recentes da disciplina em questão.
Embora Mendita y Núñez chame a atenção para a intuição criadora do artista como fator determinante para que a obra de arte desperte emoção estética, é preciso lembrar, conforme salientam Canclini e Bourdieu, de que a Sociologia da Arte não pode se pautar em análises que considerem o artista e a sociedade como unidades separadas. Isso porque a crença no dom do artista, ou seja, do “criador incriado”, é insuficiente para o desenvolvimento de estudos sobre o fenômeno artístico. Por essa via, a Sociologia da Arte consegue avançar metodologicamente, no sentido de que pode fornecer uma abordagem diferente da História da Arte, da Estética, da Semiótica e até mesmo da Sociologia Visual, consideradas disciplinas afins e para as quais pode contribuir.
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[1] Um objetivo semelhante, mas com enfoque na história da disciplina, foi realizado pela socióloga francesa Nathalie Heinich na obra A Sociologia da Arte (HEINICH, 2008).
[2] Trata-se da Introdução da obra Les arts dans la societé, uma coletânea temática que apresenta estudos de Pierre Bourdieu, Rober L. Brown, Roger Clausse, Vladimir Karbusicky, Heinz Otto Luthe e Bruce Watson. A versão utilizada aqui é a tradução argentina, em espanhol, publicada em 1971.
[3] A obra de Georg Simmel é vasta e com ampla abordagem temática. Os ensaios Estética e Sociologia (SIMMEL, 1998), Filosofia da paisagem (SIMMEL, 1996) e El problema del estilo (SIMMEL, 2000) podem fornecer um panorama de sua produção acerca do fenômeno artístico.
[4] No primeiro capítulo da obra O Capital, Marx trata sobre o processo de abstração relacionado à mercadoria, que constitui a base da alienação – ação pela qual um indivíduo ou grupo se torna estranho aos resultados ou produtos, substituindo a totalidade que expressa o universal e o concreto, pela imediaticidade. Ao se distanciar da natureza e de sua atividade criadora, o ser humano passa a ser apenas uma coisa e o objeto passa a ter mais valor que ele próprio (MARX, 1983).
[5] Em suas obras, Pierre Bourdieu define habitus como um “sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes” (BOURDIEU, 2004). O habitus constitui o produto de interiorização das estruturas objetivas que tendem a produzir práticas e carreiras objetivamente ajustadas às mesmas.
[6] Bourdieu traduziu essa obra de Panofsky para o francês e elaborou um Posfácio em que discute sobre o conceito de habitus. Esse texto ganhou um novo título pelo autor quando editado em português, sendo chamado: Estrutura, habitus e prática (BOURDIEU, 2004).
[7] Algumas dessas fotografias foram publicadas no Brasil pela Revista de Sociologia e Política (2006, p. 97-123) e no livro Esboço de autoanálise (BOURDIEU, 2005, p. 23-32).
[7] Algumas dessas fotografias foram publicadas no Brasil pela Revista de Sociologia e Política (2006, p. 97-123) e no livro Esboço de autoanálise (BOURDIEU, 2005, p. 23-32).
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