Luis Afonso Salturi
Artigo publicado originalmente na revista Tempo da Ciência (UNIOESTE), v. 17, n. 33, p. 111-122, 2010.
Introdução
Ao entrar em contato com
as obras de Pierre Bourdieu e Norbert Elias, a aproximação entre eles se torna
cada vez mais nítida. Embora suas teorias tenham origens diversas, percebe-se
que os dois sociólogos tiveram preocupações semelhantes, principalmente, ao
tentarem resolver a dualidade indivíduo e sociedade no âmbito da Sociologia. Tal
dualidade vinha se colocando na teoria sociológica desde os autores clássicos, o
que impedia um avanço significativo da mesma.
Na Sociologia clássica a
separação e a oposição entre o indivíduo e a sociedade são evidentes. Na obra
de Karl Marx, não há uma preocupação teórica com essa relação dual, os
indivíduos aparecem inseridos em classes sociais por um fator de ordem
econômica. A teoria elaborada por Émile Durkheim, ao tratar o indivíduo e a
sociedade como entidades separadas, prioriza a sociedade e a integração dos
indivíduos nela. Enquanto que, para Max Weber, os indivíduos e suas ações
sociais são os elementos que constituem a sociedade.
Na medida em que as
inovações teóricas vão se colocando, a Sociologia contemporânea se torna capaz
de responder várias questões que os estudos clássicos não conseguiram. Nas
teorias sociológicas elaboradas separadamente por Pierre Bourdieu e por Norbert
Elias, a sociedade é compreendida como um todo relacional, na tentativa de
superar as oposições e a separação entre indivíduo e sociedade presentes desde a
Sociologia clássica. Os avanços promovidos por esses autores contribuem o
estatuto científico da Sociologia, possibilitando que esta possa ser conhecida
por um público ainda maior.
Relação indivíduo-sociedade em Pierre Bourdieu
A discussão teórica acerca
da relação entre indivíduo e sociedade é um tema presente ao longo da produção
intelectual do sociólogo francês Pierre Bourdieu, tendo como marca seu livro Esboço de uma teoria da prática, precedido de três estudos de etnologia Cabila (Bourdieu, 2002),
publicado originalmente em 1972. Nesse estudo, ao
explicitar uma problemática teórica acentuada sobre a mediação indivíduo-sociedade,
o autor afirma que o mundo social pode ser analisado a partir de três modos de
conhecimento teórico.
O primeiro desses modos
de conhecimento é o fenomenológico,
chamado também de interacionista ou etnometodológico. Numa perspectiva da Filosofia
do sujeito, tal conhecimento parte da experiência primeira do indivíduo em
relação ao mundo social, sendo este apreendido a partir daquilo que é natural e
evidente. O segundo modo de conhecimento é o conhecimento objetivista, representado pelo marxismo e pela hermenêutica
estruturalista como correntes teóricas que enfatizam fatores objetivos. Esse
conhecimento constrói relações objetivas que estruturam as práticas individuais
e suas representações, rompendo com o conhecimento fenomenológico e com os pressupostos assumidos que conferem ao
mundo social o caráter de evidência e de naturalidade. Já o conhecimento praxiológico, proposto pelo autor, ao se
confrontar com as duas vertentes anteriormente citadas, resulta numa dupla translação teórica, tendo como
objeto não apenas o sistema de relações objetivas, mas as relações dialéticas
entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se
atualizam e que tendem a reproduzi-las. Sem ser apenas um retorno ao
conhecimento fenomenológico, o
conhecimento praxiológico supõe uma
ruptura com o conhecimento objetivista,
não anulando as aquisições deste, mas conservando-as e ultrapassando-as.
Partindo da exposição da
gênese e desenvolvimento dessa teoria pelo seu próprio autor, deve-se
considerar o caráter inovador da produção intelectual de Pierre Bourdieu, pois
o mesmo conseguiu reunir conhecimentos aparentemente antagônicos, ao formular
novos conceitos sociológicos. Fato que contribuiu, em certa medida, para colocá-lo
num lugar de destaque na Sociologia contemporânea. No seu livro Razões Práticas (BOURDIEU, 2004), publicado
originalmente em 1994, o autor comenta sobre o que acredita ser essencial no
todo de seu trabalho. Em primeiro lugar, uma filosofia da ciência (filosofia relacional) que atribui primazia às
relações e que raramente é posta em prática nas Ciências Sociais,
principalmente porque se opõe às rotinas de pensamento social corrente ou do
senso comum esclarecido. Em segundo lugar, uma filosofia da ação (filosofia disposicional) que atualiza as
potencialidades inscritas nos corpos dos agentes e na estrutura das situações
nas quais eles atuam.
Essa filosofia da ação é condensada por um conjunto de conceitos sociológicos
que estão dispersos em toda a sua produção científica. Dentre os quais se
destaca a noção de habitus que,
segundo Bourdieu (2003, p. 38), é
a ideia pela qual ele tentou demonstrar como se poderia escapar das
alternativas estéreis do objetivismo e do subjetivismo, do mecanicismo e
finalismo, nas quais as teorias da ação permaneciam aprisionadas. Partindo
dessa linha de pensamento, Bourdieu
(2003, p. 53) propõe uma teoria da
prática, que é definida por ele como uma ciência da dialética da
interioridade e da exterioridade, ou seja, da interiorização da exterioridade e
da exteriorização da interioridade, concepção se encontra na gênese do conceito
de habitus.
O habitus é uma
categoria de análise fundamental para os estudos sociológicos, pois não se
refere apenas ao elemento individual, mas também a um grupo ou a uma classe,
podendo ser definido como um sistema de disposições duráveis e transferíveis
que constituem a estrutura da vida social. Ao integrar todas as experiências
passadas, pode ser entendido como um sistema de esquemas de produção de
práticas que funciona como uma matriz de percepções, apreciações e ações,
tornando possível a realização de tarefas diferenciadas. Como um sistema de
disposições inconscientes, o habitus constitui o produto de interiorização
das estruturas objetivas tendendo a produzir práticas e carreiras objetivamente
ajustadas às mesmas. Portanto, a história da vida de um indivíduo pode ser
vista como uma variante do habitus de
seu grupo ou de sua classe, na medida em que seu estilo pessoal aparece como um
desvio codificado em relação ao estilo de sua época e de sua classe ou grupo
social.
Na tentativa de compreender
as implicações da noção de habitus,
Bourdieu tentou analisar as relações entre estes e os campos sociais. O conceito de campo
suporta o de habitus e se constitui
noutra ferramenta conceitual importante para os estudos sociológicos. O campo é uma rede de relações objetivas
entre posições sociais definidas objetivamente em sua existência e que fornecem
determinações que elas repõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições por
sua situação social atual e potencial e por sua posição relativa em relação a
outras posições. Visto assim, o campo
é um espaço estruturado a partir de posições de poder e disputas simbólicas no
qual pode ser constatada a existência de leis genéricas.
Nessa mesma lógica, as
práticas sociais são definidas pelo
autor como “...o resultado do aparecimento de um habitus, sinal incorporado de uma trajetória social, capaz de opor
uma inércia maior ou menor às forças sociais, e de um campo social que
funciona, nesse aspecto, como um espaço de obrigações (violências) que quase
sempre possuem a propriedade de operar com a cumplicidade do habitus sobre o qual se exercem” (Bourdieu, 2003, p. 38). Portanto, as práticas
são resultantes, por intermédio do habitus,
da relação dialética entre uma estrutura e uma conjuntura, entendidas como as
condições de atualização deste habitus,
sendo este um estado particular da estrutura.
Os habitus são diferenciados assim como as posições das quais são
produtos, entretanto também são operadores de distinções. A distinção social é
um tema caro ao pensamento de Pierre Bourdieu, que lhe dedicou um estudo amplo.
Publicado originalmente em 1979, em A
distinção (BOURDIEU, 2007), o autor faz um estudo ao mesmo tempo teórico e
empírico em que utiliza e põe à prova vários conceitos sociológicos. Dotados de
um habitus, os indivíduos são
portadores de uma espécie de senso
prático, de princípios geradores de práticas distintas e distintivas, servindo
como esquemas classificatórios e princípios de visão e de divisão de gostos
diferenciados. Assim, ao longo da obra, o autor demonstra como determinados
traços vistos como naturais num indivíduo são, na verdade, produto de uma rede
de relações e trocas no espaço social, pois o que comumente chamamos de
distinção social, uma certa qualidade considerada como inata, é de fato
diferença, separação, uma propriedade relacional que só existe em relação a
outras propriedades.
A ideia de diferença,
assinalada pelo autor, está no fundamento da noção de espaço social como um conjunto
de posições distintas e coexistentes, exteriores uma às outras, contendo em si
o princípio de uma apreensão relacional do mundo social e se apresenta
vinculada à ideia central de distinção. O sistema social não é somente um
sistema de diferenças objetivas. Os indivíduos percebem-se uns aos outros e se
comparam, quando as diferenças entre eles entram em sistemas simbólicos surge,
então, o espaço de distinções. Sua tese central é que esse espaço de distinções
simbólicas traduz e reproduz o espaço das diferenças materiais, que uma vez
percebidas, classificadas e apreciadas, funcionam como traços distintivos,
afastamentos estilísticos em sistemas de diferenças, tornando-se simbólicas. Pode-se
afirmar, então, que os indivíduos e os grupos existem e subsistem na e pela
diferença.
O modelo de A distinção, no qual Bourdieu (2007, p. 118-119) representa
as diferenças dos agentes por meio de um diagrama, define distâncias que afirmam
encontros, afinidades, simpatias e desejos. Por outro lado, a proximidade no
espaço social predispõe aproximação. O espaço social é construído de modo que
os agentes ou grupos sociais são distribuídos conforme a posição que ocupam nas
distribuições estatísticas, de acordo com dois princípios de diferenciação que
prevalecem nas sociedades mais desenvolvidas: o capital econômico e o capital
cultural[1]. De modo
geral, o espaço de posições sociais, pela intermediação do espaço de
disposições, se retraduz em um espaço de tomadas de posição. A cada classe de
posições corresponde uma classe de habitus.
Assim, uma das funções desse conceito é a de dar conta de unidade de estilo que
vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de
agentes.
Essas observações sobre a
aplicação dos conceitos propostos por Bourdieu são fundamentais para
compreender como o autor concebe a relação entre indivíduo e sociedade. Nesse
ponto, se concentra também a importância de sua teoria para os estudos que
tratam sobre trajetórias de indivíduos ou grupos. É preciso então fazer
referência ao artigo A ilusão biográfica (Bourdieu, 2004), texto incorporado como
apêndice em Razões práticas, no qual
o autor discute sobre a história de vida, uma das noções do senso comum que
entrou no universo do saber entre os cientistas sociais. Para o autor, falar em
história de vida é pressupor que a vida é um conjunto de acontecimentos de uma
existência individual concebido como história e narrativas dessa história.
Aceitar essa teoria da
narrativa é conceber a filosofia da história com o sentido de sucessão de
eventos históricos, já que a narrativa biográfica ou autobiográfica propõe
eventos que, mesmo não se desenvolvendo todos, tendem ou pretendem organizar-se
em sequências cronologicamente ordenadas e conforme certos acontecimentos que
são selecionados e que lhes são dados conexão. No que se refere à narrativa
biográfica ou autobiográfica, o autor chama atenção para o fato de que a vida
não pode ser concebida como um todo coerente e orientado que pode e deve ser
apreendido como expressão unitária de uma intenção subjetiva e objetiva de um
projeto. Essa concepção leva à construção da noção de trajetória como uma série
de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou grupo em um espaço
ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes.
Essa concepção de
trajetória aparece também em As regras da
arte (BOURDIEU, 1996), obra densa em que utiliza as mesmas categorias
sociológicas para analisar, dentre outras coisas, um romance de Gustave Flaubert.
A literatura é, então, tomada por Bourdieu como metáfora do mundo social, pois
num romance, assim como na vida real, os personagens constroem suas carreiras a
partir do espaço social. Isto porque, para Bourdieu, é preciso compreender o
campo com o qual cada um se fez. Por isso é que em Esboço de auto-análise (BOURDIEU, 2005), o sociólogo se preocupou
em escrever sua história social, apresentando-a de uma forma muito singular,
com base em sua trajetória social, experiências, expectativas e desilusões,
fazendo uso de sua própria teoria.
Bourdieu redigiu Esboço de auto-análise tendo em mente
as questões que procurava responder ao examinar a trajetória dos escritores e
artistas como Gustave Flaubert, Charles Baudelaire e Édouard Manet. O livro
pode ser visto como uma das maneiras de por à prova sua concepção de trajetória
social, e serve como um modelo de aplicação dessa proposta metodológica, por
meio da qual o autor afirma que para estudar um autor é importante saber sobre
sua trajetória e obra, para poder descobrir quais razões intelectuais e
políticas conduziram seu pensamento. Na visão de Bourdieu, cada autor só existe
e subsiste de acordo com as limitações do campo,
criando seu próprio projeto criador em função da sua percepção das possibilidades
disponíveis e inscritas em seu habitus
por certa trajetória e também pela escolha ou recusa dos possíveis. Para compreender
uma obra cultural é preciso compreender também o campo de produção e a posição
do produtor nesse espaço.
Relação indivíduo-sociedade em Norbert Elias
Na teoria sociológica desenvolvida por Norbert Elias a relação indivíduo-sociedade aparece na forma de um profundo e exaustivo questionamento, a ponto do autor lhe dedicar um livro inteiro sobre o tema. É em A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994), obra publicada originalmente em 1987, que o autor aponta várias questões sobre o tema que vinham sendo levantadas por ele desde 1939, quando publicou sua obra clássica intitulada O processo civilizador (ELIAS, 1990). No início de A sociedade dos indivíduos, o autor afirma que faltam modelos conceituais e uma visão global para tratar da relação indivíduo-sociedade, pois as noções apresentadas nas teorias sociológicas clássicas não levam em conta a interdependência existente entre indivíduo e sociedade. Uma das críticas a esse respeito é o tratamento do indivíduo como “meio” e da sociedade como “fim”. Tal visão prejudicaria o entendimento da relação entre indivíduo e sociedade e o avanço de uma conceituação mais aprimorada. Para o sociólogo alemão, tal relação é uma algo muito singular que não apresenta analogia em nenhuma outra esfera de existência. Na compreensão desse e muitos outros fenômenos, “... é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções” (ELIAS, 1994, p. 25) [grifo do autor].
Na visão de Norbert
Elias, uma compreensão clara da relação indivíduo-sociedade só se concretizaria
a partir do momento em que tanto o processo de individualização quanto a historicidade
forem incluídos na “teoria da sociedade”. Essas duas instâncias, somadas ao
conceito de habitus social, entendido
como a composição social do indivíduo, que constitui o solo no qual se assentam
as suas características pessoais, que o diferencia dos outros membros de sua
sociedade. Assim, o autor lança uma crítica à ideia da existência de um “eu”
único e exclusivo que habita em cada indivíduo. Pois, por mais autêntica ou verdadeira
que seja essa ideia, enquanto expressão da estrutura especial da consciência e
dos indivíduos num certo estágio do movimento da civilização, ela é inadequada.
Nesse sentido, segundo Elias (1994, p. 35), os instrumentos do
pensamento humano não são suficientemente móveis para tratar adequadamente de
fenômenos como a relação indivíduo-sociedade. Uma visão mais detalhada desse
tipo de inter-relação é conceito de rede, exemplificado na rede de tecido.
Nessa rede, os fios se ligam uns aos outros. Nem a totalidade da rede, nem a
forma assumida por cada fio podem ser compreendidas em termos de um único fio
ou de todos eles isoladamente considerados. A rede só é compreensível em termos
da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca. O movimento dentro da
rede nada mais é do que as relações interpessoais. O entendimento dessas questões
foi prejudicado pela especialização e divisão de objetos das ciências, fato que
ocasionou um crescimento da dependência mútua entre os indivíduos e a
diferenciação de cada um.
Essa noção de rede de
interdependência aparece em A Sociedade
de corte (ELIAS, 2001). Nessa densa obra, ao tomar a sociedade de corte
como um exemplo histórico, o autor aponta a incoerência da oposição indivíduo e
sociedade por meio do conceito de figuração.
Esse conceito permite explicar de que modo e porque os indivíduos estão ligados
entre si. Ao tentar compreender a realidade social em sua totalidade, o autor
enfatiza as redes ou estruturas de interdependências que se estabelecem entre
os indivíduos e que se assemelham a um jogo. Assim, na construção e análise de
uma conjuntura histórica, tem-se como premissa fundamental a inexistência de
agentes sociais individualizados ou a ideia de uma sociedade “sobre os
indivíduos”, mas uma rede de interdependências entre eles, que engendram
códigos e comportamentos.
Por meio do conceito de figuração, ao desenvolver essa noção de
rede, Norbert Elias contribui de forma significativa para o avanço da teoria
sociológica. Outra obra de peso que segue esse modelo teórico é Mozart, sociologia de um gênio (ELIAS,
1995). Nela, o autor concebe a Sociologia como uma ciência que busca entender e
explicar o que é incompreensível na vida social. Isso se torna nítido na
escolha do subtítulo paradoxal da obra, que permite compreender também como o
autor enxerga os estudos sobre trajetórias: “Não é meu propósito destruir o
gênio ou reduzi-lo a outra coisa qualquer, mas tornar sua situação humana mais
fácil de entender, e talvez ajudar, de maneira modesta, a responder à pergunta
do que e deveria ter feito para evitar que acontecesse um destino como o de Mozart”
(ELIAS, 1995, p. 19).
Em sua pesquisa, Elias
analisa a vida do músico que desde a infância habituou-se ao sucesso se tornando
consciente de sua genialidade e que, mais tarde, passou a não aceitar a
condição subalterna de serviçal da corte do monarca-arcebispo de Salzburgo, sua
cidade natal. Mozart sentia-se injustiçado ao compor para o serviço religioso,
situação enquadrada às alternativas que um músico dispunha naquele momento,
sendo as escolhas mais sensatas na avaliação de seu pai que também era músico. Para
se libertar dos seus patronos e senhores, Mozart lutou com seus próprios
recursos em prol de sua dignidade e sua obra musical, mas não conseguiu vencer.
O autor considera
importante para a Sociologia buscar compreender os desejos e as pretensões de
cada indivíduo frente à posição que estes ocupam na vida social. Elias (1995, p. 13) afirma que para se
compreender alguém é preciso conhecer os anseios que este deseja satisfazer.
Para o autor quase todos têm desejos claros, que são passíveis de serem satisfeitos,
pois a vida faz sentido ou não para os indivíduos conforme conseguem realizar
tais aspirações. Os desejos evoluem ao longo da vida de cada um através do
convívio social e vão sendo definidos ao longo dos anos. Porém, isto pode
ocorrer de repente, associado a uma experiência especialmente grave. Elias (1995, p. 36) também chama
atenção para a postura que o pesquisador deve manter em sua pesquisa em relação
a essas questões. Para ele o pesquisador precisa partir da perspectiva do eu e não do ele para entender os desejos individuais.
Outra questão
interessante que aparece nesse ensaio sobre Mozart é a explicação do autor
sobre o processo de transição da arte de artesão para a arte de artista. Para Elias (1995, p. 135) Arte de artesão é a arte feita por
encomenda ou sob a proteção de um mecenas por um indivíduo considerado
socialmente inferior e para atender às exigências de um grupo de gosto muito
específico e hegemônico e, portanto, mais objetiva. Arte de artista é a modalidade na qual o autor, de nível social
equiparável ao de seu público e respeitado como indivíduo dotado de talento
criador, pode expressar-se com maior subjetividade.
Considerando
essas diferenças, Elias (1995, p.
45-52) mostra como alterações da estrutura social podem favorecer a formação de
um novo padrão de gosto e estilo redefinindo a relação entre o artista e seu
público. No caso específico de seu estudo, Elias mostra como se deu a ascensão
da burguesia à condição de público consumidor de cultura, a substituição do
classicismo na música erudita pelo romantismo, e a mudança do subalterno
artesão para a do artista livre e de nível social equivalente ao do consumidor
de sua arte. Para o autor, a trajetória social de Mozart mostra claramente que
a virada da arte de artesão para a criação artística livre foi um processo com
muitos estágios intermediários.
Seguindo a
mesma linha desse seu estudo sobre Mozart, em A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor (ELIAS, 2005), o autor analisa
a produção de uma tela do pintor francês Jean-Antoine Watteau relacionando-a
com o momento vivido pelo artista e as condições que permitiram sua criação. Segundo
Elias (2005, p. 23-24), assim
como Mozart, Watteau queria sua independência, porém teve mais sorte que o
músico, pois conseguiu sua admissão à Academia Francesa em 1712. Nessa época o
artista precisava doar uma obra-prima para ingressar na corporação e, então,
entregou Peregrinação para Cítera,
mas somente em 1717. Elias sabia detalhes precisos e conhecia uma vasta
bibliografia sobre esse quadro, cujo tema apresentava três diferentes versões.
Aproximações entre os autores
Os escritos de Norbert Elias lançam uma forte crítica à forma convencional como é concebida a relação entre indivíduo e sociedade tanto pelo senso-comum quanto pelo discurso científico promovido pela Sociologia. O autor trata de questões epistemológicas que remetem aos primórdios da Sociologia, período em que essa problemática já se colocava. Ao realizar essa tarefa, o autor aponta as principais dificuldades do sociólogo frente ao seu objeto de estudo. O autor lança mão da ideia de configuração para suprir a insuficiência dos conceitos sociológicos propostos pela Sociologia Clássica, colocando o problema da interdependência humana como tema central da teoria sociológica. Em muitos aspectos, essa iniciativa de Elias se assemelha às filosofia da ação promovida por Bourdieu, cujos conceitos sociológicos viabilizam uma saída alternativa às análise que priorizam ora o objetivismo ora subjetivismo, separadamente.
Um dos principais
empreendimentos desses dois autores foi a atualização e utilização do conceito
de habitus na teoria sociológica,
conceito que ganhou um espaço ainda maior na obra de Bourdieu, que se preocupou
várias vezes em definir o termo. Contudo, é preciso lembrar que o conceito de habitus possui uma longa tradição
filosófica, antes de sua apropriação por Bourdieu. De origem latina, o termo habitus foi empregado pela tradição
escolástica como tradução da noção grega de hexis, utilizada por Aristóteles para designar características do
corpo e da alma adquiridas através de um processo de aprendizagem. Dentre os
autores que utilizaram o termo antes do sociólogo francês, merece destaque o
historiador da arte Erwin Panofsky e o próprio Elias. Em Arquitetura gótica e Escolástica (PANOFSKY, 2001), estudo
apresentado em conferências em 1948 e publicado em 1951, Panofsky utiliza o
conceito de hábito mental como o
“princípio que rege a ação”. Ao retomar essa análise, Bourdieu estabelece um
sentido mais preciso ao conceito e levanta um problema sociológico. Esse
sentido é semelhante ao que aparece nas obras de Elias publicadas a partir de
1939, nas quais este define o habitus
como “composição social dos indivíduos”, “segunda natureza” ou “saber social
incorporado” (ELIAS, 1994).
Numa entrevista, quando
perguntado sobre o que achava das comparações de suas análises àquelas feitas
por Georg Simmel e por Norbert Elias, Pierre Bourdieu afirmou que só poderia
ficar contente com essas comparações. Uma vez que o primeiro foi um autor que
ele leu muito e cujas análises, principalmente aquelas sobre a cultura, também
gostou. Contudo, Bourdieu ressalta que Simmel confiava demais em sua intuição,
e que esta algumas vezes era muito superficial. Por outras razões, Bourdieu se
sente mais próximo de Elias, que capta mecanismos ocultos ou invisíveis que tem
sua base na existência de relações objetivas entre os indivíduos ou as
instituições (BOURDIEU, 2000, p. 48).
Há uma forte semelhança
entre os conceitos formulados por Elias e aqueles formulados por Bourdieu, isto
porque em suas obras ambos se preocuparam em resolver a dualidade indivíduo e
sociedade. A partir de uma leitura e análise apurada dos estudos desses autores
é possível notar que ambos lançam uma perspectiva sobre essa relação dual. O
ponto de vista de Norbert Elias em Mozart
é muito semelhante ao procedimento metodológico que Pierre Bourdieu utilizou em
Esboço de auto-análise. Além disso, assim como Bourdieu, Elias lança uma
crítica à abordagem histórica que reproduz a ideologia dominante no momento em
que supõe um caráter único aos acontecimentos e postula a liberdade individual
como fundadora das práticas, por meio de atos voluntários e intenções livres.
Essa proximidade entre os
autores aparece também no conceito de habitus.
Porém, para Elias o hábito social pode ser entendido como aquilo que
constituiria a base a partir da qual derivam as características pessoais que fornecem
aos indivíduos a formação de sua identidade. Diferente de Bourdieu, Elias se
prende às questões da historicidade e da genética do habitus, se preocupando em explicar a gênese dos habitus e porque estes evoluem e se
transformam.
Referências
BOURDIEU, Pierre.
A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo:
Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.
_____.
As regras da arte:
gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_____. A sociologia de Pierre Bourdieu. Organizada por Renato Ortiz. São
Paulo: Olho d’Água, 2003.
_____. Esboço
de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_____. Esboço
de uma teoria da prática, precedido de três estudos de etnologia Cabila.
Oeiras, Portugal: Celta, 2002.
_____. O campo econômico: a
dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000.
_____. Razões
práticas: sobre a teoria da ação. 5 ed. Campinas: Papirus, 2004.
ELIAS,
Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
_____. A Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
_____. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
_____. Mozart,
sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
_____. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e
escolástica: sobre a analogia entre arte, filosofia e teologia na Idade Média.
2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[1] Na teoria de Bourdieu, é possível distinguir quatro
tipos de capital que permitem estruturar o espaço social: o capital econômico, que é constituído
pelo conjunto de fatores de produção e bens econômicos; o capital cultural, composto pelo conjunto de qualificações
intelectuais e conhecimentos transmitidos e/ou adquiridos, podendo existir em
estado incorporado, como disposição duradoura do corpo, em estado objetivo,
como bem cultural ou e em estado institucionalizado, sancionado por
instituições; o capital social, que
corresponde ao conjunto de relações sociais de que dispõe o indivíduo ou grupo;
e o capital simbólico, que afirma
respeito ao conjunto de rituais ligados à honra, ao prestígio e ao
reconhecimento.